27/04/2013

Cartas de Lisboa XVI

un secret. by~moumine on deviantart
Entendeste então os estilhaços no meu discurso. Eu vi os olhos dele e eu vi-lhe talvez o desespero, mas porém também a arrogância de quem pedinchou a atenção dos amigos de nunca, porque os dias nos custavam e as noites pesavam francamente demais. Pensámos que só se sofria assim uma vez. Depois alguém nos arrancou da cabeceira das pessoas fáceis. O mundo virado do avesso e tu sem isqueiro. Naqueles dias, não havia mágoa mas ironia. Conhecíamos pessoas. Fazíamos jantares de cerimónia baça. O meu nome é João e tu lembras-me alguém. Queríamos a nossa identidade de volta e queríamos esquecer quem eramos. Queríamos o fim precoce dos exercícios de conveniência mas queríamos ficar ali para sempre: em casa não havia mais opções.
Depois eu entendi-me nas comparações dos outros. Fomos todos longe demais. Eramos adolescentes, a alimentar amor onde sobrara um borrão de tinta-da-china, certamente sem querer. Elas descobriam então que queriam muito mais. Eles aquele mundo snob cheio de histórias, sem gente. Por tantas vezes, achaste que passava por ti o homem perfeito e desejaste que ele não tivesse passado. Querias um homem sem musa, querias um homem sem mágoa. A tua bagagem, porém, estava em todo o lado. Trazia-la colada às rugas dos olhos. Era uma tatuagem que te dava balanço nas direções erradas e que ostentavas como um troféu. Sofri assim e ganhei o direito a ir embora sempre que quisesse. E assim foi. Fomos contra toda a gente. Disseram que fora ódio, disseram que fora apenas aborrecimento. Aquele não era simplesmente o nosso lugar, e nós sentíamos, bem no centro do nosso útero, o tic-tac dos homens sem futuro. Era arrogância e nós sabíamo-lo. Talvez por isso nos tenha levado tanto tempo a escrever sobre isso. Já não havia amor em nada disto. Nem mesmo despeito. Havia talvez falta de fé, falta de um estrume convincente que alimentasse as perspetivas dele um dia se revelar o homem que procuravas. E tudo isso era insustentável, porque tu já não conseguias viver de fé, e porque tu já não conseguias viver de amor. À tua volta ficaram todas aquelas relações por acabar. As tantas que ainda recordas. Todas as noites te procuras enquanto revives tudo isso. O amor era afinal uma mentira e tu querias que desta vez fosse mentira por um homem extraordinário.
Mas não era.

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