30/01/2013

Cartas de Coimbra LVII


Conheci-a em consulta. Era tão igual a todas as outras mulheres que batiam à porta da psiquiatria que eu não entendia porque é que esta chorava mais. Passou o cancro, passou o luto e agora chorava por um quelque chose que ninguém entendia. Tinha brincos grandes e olhos de um velho bonito. Eu olhava e não entendia porque é que não me revia naquela mulher e no entanto ela era eu, e no entanto ela queria falar que escrevia, e que escrevia escondida e que chorava um quelque chose todas as noites que ninguém entendia. Falava e negava uma raiva que eu - ironia! - conheci tão bem. O paradigma das mulheres que precisavam de ser mais mulheres e que por isso escreviam. Pensei naquele 6 de Novembro e nos 6's de Novembro que deixaram, eventualmente, de ser efemérides. Pensei no quanto adorava escrever e no quanto adorava escrever-te, e que, apesar de tudo, nunca conseguira escrever uma história. Talvez fosse apenas uma redenção tardia que eu procurava naquele 6 de Novembro. Ela dizia que Vingança era tudo o que ela não queria que aquilo fosse, e ela dizia que Vingança era tudo o que ela precisava. Ela dizia que precisava de valer mais. Que precisava de melhorar aqueles 10% de culpa e de amar mais o lado frio da cama. Que precisava dos remorsos dos outros, da tristeza dos outros, do espétaculo sombrio que é uma morte lamentada, quando não há nada a fazer. Ela queria não chorar à mesa do jantar. Queria sair e trair o marido, brincar às mulheres bonitas, deixar-se devorar por uma crise maníaca, e enfim morrer. Ela queria que a vida fosse uma outra coisa. Para ela, os dias passavam, as mães morriam, os filhos adultos ficavam orfãos e os filhos adultos não sabiam gerir-se num mundo sem mães. A segurança dava lugar à dormência de uma hierarquia de fim de vida.
Quem me dera a mim não chegar tão longe. Preciso ainda escrever uma história qualquer, fazer dinheiro com o destino errado dos homens, ir embora de novo e voltar pelo amor certo. Adormecer de tão velha nos braços de uma mãe não tão velha assim. Embalar os filhos dos meus homens (certos ou errados, tanto faz) e vir morrer em paz na foz do mesmo rio de sempre.