28/09/2010

Cartas de Lille III

Foi então que me disseram para não tentar ser quem não sou. Para não tentar vencer num cenário que não é o meu. Lembrei-me disso ontem quando caia no primeiro sono. Gostava que isso se entranhasse mais fundo. Que me chegasse à génese das ideias e apagasse as memórias mais turvas. Quero esquecer tudo o que gostaria de ter feito, tudo o que fingi que podia ser. Não há fantasma pior que o da conformação. E é disso que falo no intervalo que existe entre o que sou e a forma de estar que gostaria de ter tido. Faltou-me a coragem, pergunto. Mas não. Faltou talvez, como falta hoje ainda, a capacidade de definição. Não consegui escolher qual dos mundos o meu e deixei-me tombar para o lado mais fácil, porque não suportava mais a corda bamba da indecisão.
Hoje visto ganga escura, tenho o cabelo apanhado, óculos de massa grossa e as sobrancelhar por fazer. Vejo filmes americanos, emociono-me com best-sellers mas não com Almodovar. Não sei ser feminina, mas esforço-me por isso. Quando me perguntam pelo que gosto de fazer, só me ocorre dizer que sou fingidamente simpática e que oiço indie-rock.Tenho um blogue, o mais irónico dos sinais do quão banal me tornei. Do quão desinteressante me tornei.
É uma pena. Aos 14 anos eu ouvia música folk, lia romances de autores desconhecidos, tinha uma lista de filmes antigos que queria ver. Aos 14 anos eu sabia mais de história, geografia e de Amália do que sei hoje. Sabia argumentar e tinha uma opinião sobre quase tudo. Era uma idealista, uma sonhadora. Era indiscutivelmente inteligente e não duvidava disso. Vestia-me mal, sem estilo próprio, mas ainda assim, era provavelmente melhor pessoa. Cantava Joan Baez nas viagens longas, achava que quando fosse "grande" me tornaria militante da esquerda e que acamparia todos os anos no Avante. Aos 14 anos eu escrevia com mais imaginação, mais paixão e melhores palavras. Escrevia com uma indignação maior: o mundo era simplesmente um sítio injusto.

Aos 14 anos, eu desconfiava que o sexo seria uma coisa boa, mas não necessariamente romantica. Tinha pressa, mas uma pressa ideológica. Guardava para mim tudo em que acreditava e acreditava realmente em tudo o que fazia.

Tenho saudades do magnetismo que tinha pelas coisas que realmente interessavam. Pelo fundamental. Preferia ser melhor do que feliz, a todo o custo. Hoje, como se a vida me tivesse ensinado seja o que for, prego o oposto. Sou mais feliz, mas vergonhosamente banal. Perdi ferramentas para dar passos em frente e tudo isso porque me tentei encaixar em todos os lugares. Ser doce, amarga e intensa ao mesmo tempo. Tornei-me uma sincera insonsa. Mas não posso pedir desculpa por isso.

24/09/2010

Cartas de Lille II

No tumulto da rua de todos os dias, somos muitos e todos pedimos consolo aos 3 euros de álcool que é quase sempre o nosso jantar. De repente alguém fala a nossa língua e de repente todos falamos a mesma língua e todas repetimos com frieza que não é amor o que nos falta, mas sexo, mas lascívia, mas qualquer coisa que não é amor. Estamos sentadas numa mesa redonda e há cigarros apagados, cervejas mortas, um inglês metálico e semi automático. Diria que estamos envergonhadas. Por termos a vida do avesso, contas pendentes, uma história de amor que em voz alta se tornou apenas num cliché. Sorrimos estupidamente quando alguém pergunta onde ficaram as noites de sexo furioso, as roupas rasgadas, as manhãs que não tinham horas, quando o nosso quarto era um sítio quente e com vida. Olhamos para o fundo do copo vazio e quase em simultâneo para o fundo da carteira vazia. Porra. Fechamos a loja por hoje. Sentimos raiva na bebedeira insatisfeita que não podemos comprar. Na felicidade que os burros dizem que não podemos comprar. Nem com um bilhete de regresso a casa. E aí reside todo o paradigma. Isto já não é sobre esta França que nos suga o dinheiro e a felicidade. Isto é tristeza que trazemos colada a pele, não importa onde e com quem dormimos. Isto é querer ser feliz, de uma maneira ou de outra, cada vez com menos detalhes.

O silêncio pesa-nos finalmente porque voltamos quase sempre sozinhas a casa. Estamos absolutamente geladas. Queremos chorar mas fingimos que ainda não chegou a nossa hora. Somos tesas, pensamos. Somos exactamente como queriamos ser aos 14 anos. Somos cansativamente apaixonadas, pesarosamente irracionais. Temos medo de estar sozinhas e usamos boinas ridiculas de lã. Um único par de ténis rotos a esboçar a ideia que temos de nós próprias. Já não temos 14 anos e já não queremos fingir que somos intelectuais. Temos apenas 20 anos e perdemos toda a coragem.

05/09/2010

Cartas de Lille I

Eu já cá estou. Sinto-te comigo a cada instante. Não importa quanto te hei-de odiar um dia, hoje agradeço por seres, por mim, mais que tu próprio. Não importa a cama onde (não) estivemos juntos, esta será sempre a nossa casa. Esta será sempre a minha casa. Esta serei sempre eu própria.

A velocidade dos dias é brutal. A informação imensa a fluir a todas as horas, de noite e de dia. A logísitica de ser uma estrangeira a tempo inteiro e para todos. O destruir barreiras que se re-erguem todos os dias. A impressão que apenas a cerveja nos abre portas, quando na verdade as fecha. O frio que só eu sinto. O medo invisível. O cansaço de todas as manhãs. A água quente a jorrar no corpo gelado pela impessoalidade dos corredores. As pessoas que quisemos que fizessem parte da história. A solidão que será sempre uma constante, não importa a latitude. Somos afinal livros demasiado brancos, espelhos sem reflexo, tempo perdido. Todos os dias acordo à tua espera. Um dia hei-de voltar e nunca mais ir embora.