17/03/2008

Cartas de Coimbra VII


por Marzena Gregier


Um mundo a meio. Uma meia laranja sem brinde, um meio ano por perfazer um sonho onde estou só por metade. Eis que foi assim que voltei a Lisboa. Que foi assim que voltei à contagem crescente dos anos que teremos de esperar para tentarmos de novo. Para tentarmos de novo ser felizes, e não apenas felizes por metade. Tão simples quanto isso. Tão banal. A muralha de Lisboa que me fez sombra tantas vezes... O recorte do castelo, a minha eterna varanda para uma lua cheia que não vejo desde há tanto tempo. O Tejo, as festas, as ruas, o Fado, os amigos. O tempo. Tão absurdamente banal quanto o tempo e todos essas recordações indevidas para quem foi viver para longe. E hoje eu digo, de costas para o Mondego, que não quero voltar a Lisboa. Que, mal por mal, que me esqueça dela. Que me esqueça do bairrismo, da tempestade de gente a viver Lisboa todos os dias em hora de ponta; que me esqueça que todos os caminhos vão dar ao prenúncio de uma ausência. Que todos os caminhos já são saudade ainda antes de os completarmos. E hoje eu digo, bem de frente para a fachada da velha faculdade, que não deveria ter sido assim; mas, não havendo escolha, que o resto se faça a correr. Que os amores ganhem vida depressa, que eu me canse deles, que eles passem por nós como se nunca tivessem acontecido. E hoje, apesar de dizer tudo isto, volto a Lisboa. Volto ao largo Camões, à primeira manifestação que partilhei contigo; volto ao Carmo, volto aos miradouros a quem escrevi tantas cartas de indecisão, volto aos promontórios de escadas, às nossas inesquecíveis tardes de chuva. Volto ao Chiado, volto aos jardins onde escondemos tantos segredos, volto aos museus, aos autocarros que nunca tiveram destino. Volto às castanhas quentinhas, ao mar de gente que fala e sente coisas que eu não entendo. Volto à minha infância, aos velhos rostos que se perderam com a prepotência dos acasos.

06/03/2008

Cartas de Coimbra VI

por Inês Sacadura

Há filmes que te fazem rever por dentro e por fora. De vários ângulos, um por um, todos em simultâneo, num rastreio interminável que julgas vir um dia a culminar numa visão mais sensata da realidade que és. Mas nunca vai ser assim. E tu me dirás que não e sacudirás a cabeça como se desaprovasses tudo no que me tornei hoje.

Foi na paragem de autocarro que ele me disse. Disse-me que me levava a casa. Que me levava a casa porque tu nunca o perdoarias se alguma coisa me acontecesse. E isso fez click na minha cabeça, sabes? Não te sei dizer de que forma. Mas o que eu mais queria naquele instante era tão somente que ele não tivesse dito aquilo. E que não se tivesse rido depois, e que não me tivesse visto chorar, e que não me tivesse levado a casa como prometeu. E que a minha história fosse outra, outra qualquer sem margens de engano, sem que eu pudesse duvidar da autenticidade das coisas.

E a minha verdade não pode realmente ser apenas mais uma. A saudade que ainda sobra dos dias porque não me encaixo neste paralelo como me encaixava em ti. A demora das coisas em acontecerem e todos os dias o teu nome soar com menos raiva, com mais distância. A confiança que não tenho ainda para dar a ninguém mas que, por evazivas, vou-lhe dando, tão cega e tão desperta quanto só tu me sabes ser. Um duplo nó na garganta a endurecer em dias
em que te escrevo porque não tenho escolha.

E há filmes que te fazem rever por dentro e por fora. Sem que isso mude coisa alguma.
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O filme... Awake. Mas só para alguns de entre nós.