17/12/2013

Cartas do Brasil

Eu estava apaixonada quando naquele dia 13 o avião atrasou duas horas. Viajava há 15 dias pelo Brasil - tive chuva, tive sol, linhas de comboio cortadas, pão de queijo e cachaça mineira. E então era dia 13 e eu estava apaixonada por um homem que conhecera 3 anos antes e que vira 3 vezes na vida. Gosto de acreditar que foi por outra razão que cheguei a SP  naquele dia. Que é por outra razão que contei os dias e contei as horas desta forma. Que desejei que o tempo não nos adiasse mais, que desejei que o tempo congelasse naquela minha última noite em SP.
Todos disseram que não haveria amor em SP, e eu vim mesmo assim. Tudo foi verdade - por isso acordamos como dois estranhos. Talvez lamente tudo isto. Talvez um dia lamente tudo isto. A vila, o samba, a Paulista. A gente deu aquele último beijo sem graça; sentiamos que encerrávamos a nossa história que nunca foi o que fizemos por ela. Apesar de tudo, com 24 anos, fiz as malas e amei um paulista por 3 dias que demoraram minutos, com a certeza de que não nos veriamos nunca mais. Bebemos aquele tanto, ouvi Samba noite dentro, dormi com Maria Betânia, despedi-me com Gonzaguinha. Diria mesmo que tenho inveja da vida que tive. Ainda que nunca tenha havido amor em SP.

06/11/2013

6 de Novembro de 2006

Hoje o Cartas de Coimbra faz 7 anos. De uma escola secundária de Lisboa à Universidade de Coimbra. Das Cartas de Lille às Cartas de Bordeaux.
Vivi aqui o antes, o durante e o depois de Ti. Hoje parece que aconteceu tudo a uma outra pessoa, numa história diferente.
Criei este espaço para ficar perto da pessoa que mais amava. Foram anos e anos de desencontros - achava eu. Foi no dia em que deixamos de nos amar que eu vivi um verdadeiro desencontro e, desde então, a minha vida não foi outra coisa senão isso mesmo. Mas nos desencontros encontrei parte das melhores coisas do mundo, e nos Regressos as lições mais duras dos últimos 7 anos. Depois olhei em volta e vi que estava toda a gente a ir-se embora.
Não sei se o mundo foi sempre assim, ou se isto é o Portugal que sobrou para nós.

28/10/2013

Cartas de Lisboa XVIII

É nestes dias em que as coisas más acontecem. Como quando na enfermaria te falam de melhoria terminal e no dia seguinte o teu doente morreu. Assim são os dias de aniversário, com o frenezim das mensagens e dos telefonemas e das surpresas. Assim as cervejas bebidas com pressa. Assim a ressaca de todas as coisas boas: és insultuosamente feliz e depois faz-se silêncio e tu juras que podias morrer asfixiada nesse compasso de espera. Este dia já foi de todas as formas e tu querias seguir sem bagagem, sem ressentimento. Recebeste 145 mensagens, mas é das ausências de que te lembras. É daquele ano de que te lembras. Daquele futuro que se fechou, sem que nunca tenhas aberto um que o compensasse. É de Coimbra de que te lembras. É dele de que te lembras.
E no entanto, e apesar de insultuosamente feliz, e apesar de teres chorado de tanto rir, de teres sorrido de tanto lembrar, a noite fez-se de um silêncio insuportável. Querias ser melhor por todas as coisas incríveis que viveste hoje, mas tudo em ti é uma estúpida e injusta ausência.

07/10/2013

Cartas de Lisboa XVII


Encontrei-me novamente com a estranha que boicotou todos os projectos em plasticina que eu jurei fazer voar. Pergunto-me quantos planos nos correram mal e quantos esboços de nós dois nunca saíram do papel. Ou que nunca passaram de plasticina. Sei que ficámos estanques, pesando na vida um do outro, como pesam os outros nas vidas de que não se arrependem.
Mas eu era a estranha, a dita estranha. E isso da faca e do queijo na mão não era para mim: eu não conseguia decidir. Não era a dor da escolha, era a dor da renúncia. A responsabilidade das pessoas felizes. E num momento de pânico, eu diria (novamente) que não queria mais, que queria começar do início. Que não queria mais as músicas onde nos encontrámos a vida toda – sim, como se tudo isto tivesse durado uma vida. Faz tanto tempo que tento escrever e sinto que os meus constantes erros me interrompem. Ontem alguém dizia que todos temos um ideal de história de amor pessoal e eu sou da geração dos amores de viagem. A morte já não nos leva o coração, são afinal os intercidades e as paragens de metro. Aos 20 anos, separámo-nos mais do que o teríamos feito há 30 anos atrás. E no entanto, nunca fomos capazes de mudar a nossa rota – mesmo que isso tenha sido afinal uma derrota e não uma forma dissimulada de heroísmo. Passou-se enfim tanto tempo e eu continuo com este gosto a ressaca e metal na boca que me lembra todo o amor que ficou por resolver. Talvez o amor seja uma mentira. Ou talvez eu seja uma mentira. Mas, fosse como fosse, eu achava-me uma pessoa completa e eu achava-te outra pessoa completa. Assim como a ele, e a ele, e a ele. Mas em mim não havia pontos finais – coisas próprias de quem fala português. Em mim havia tantas histórias incompletas à espera de seguimento, que no fim do dia, eu nem sabia a quem devia fidelidade afinal.

06/06/2013

Cartas de Coimbra LX

Um dia o vazio será tão grande que vou ser capaz de escrever outra vez. Um dia todas as construções caiem, e um dia todas as construções nascem de novo. Terra vencida será terra queimada. Entendo enfim que tudo não passa de um puzzle sem encaixes. Foram muitos começos, mas nenhum que matasse a raíz do passado, o dia 0 de todas as mágoas, o retrocesso sistemático a uma Coimbra, a uma Lisboa, todas as fintas que fizemos a nós próprios. Foram demasiadas partidas. Demasiadas. Foi a expectativa de nos contornarmos, de nos esquecermos. Foi a traição de todos os regressos; um coração que paralisamos e que voltamos sempre para salvar.
Salvar o que já não tinha solução. Nunca teve. Esperámos anos para entender isso. Lutamos ainda contra isso mesmo. Fomos estúpidos, durante demasiado tempo. Vimos crianças sem opções e quisemos fingir o nosso problema mesmo assim. Temos nas mãos um mundo que não é nosso e acima de tudo, temos medo.

20/05/2013

Cartas de Coimbra LIX

Tudo o que eu queria era deixar a música no play para onde quer que eu fosse. Era adiar o tempo e adiar a revolta e adiar o adeus. Seguir no compasso da música, sem sentir o deserto da almofada ou a queimadura do chuveiro ou o bafo lógico do hospital. Tudo o que eu queria era perder-me de hipnose nos solavancos de Chico ou no desgaste do Cohen. Tudo o que eu queria era não estar aqui.
 
Faltam enfim dois meses e sobrou uma Coimbra que asfixia. O povo diz de suas verdades, caprichando fitas amarelas como ritual de passagem. Eu morro-lhes de inveja. Eu não sou daqui, eu nunca fui daqui. O enlace que dei na vida dos outros desatei-o com o remoinho que foram as minhas tantas partidas e todos os meus regressos por finalizar. A devoção morreu-me na praia quando percebi que não era importante. Revi a minha vida e sentei-me à espera do momento da partida. Coimbra, sorte em não te ter para a vida, pensei. A música dizia que quem não te ama não vive e eu perdi a conta às vezes que morri por tudo o que quiseste representar. Honestidade era um caminho, mas não o teu. O teu caminho, de lirismo e socialistas e uns tantos que achavam que Coimbra era uma lição. Não rezaste as história dos teus fracos, os de espírito e os de chama. Fizeste filhos sem coragem, mas nunca me adoptaste a mim.

Faltam enfim dois meses.

27/04/2013

Cartas de Lisboa XVI

un secret. by~moumine on deviantart
Entendeste então os estilhaços no meu discurso. Eu vi os olhos dele e eu vi-lhe talvez o desespero, mas porém também a arrogância de quem pedinchou a atenção dos amigos de nunca, porque os dias nos custavam e as noites pesavam francamente demais. Pensámos que só se sofria assim uma vez. Depois alguém nos arrancou da cabeceira das pessoas fáceis. O mundo virado do avesso e tu sem isqueiro. Naqueles dias, não havia mágoa mas ironia. Conhecíamos pessoas. Fazíamos jantares de cerimónia baça. O meu nome é João e tu lembras-me alguém. Queríamos a nossa identidade de volta e queríamos esquecer quem eramos. Queríamos o fim precoce dos exercícios de conveniência mas queríamos ficar ali para sempre: em casa não havia mais opções.
Depois eu entendi-me nas comparações dos outros. Fomos todos longe demais. Eramos adolescentes, a alimentar amor onde sobrara um borrão de tinta-da-china, certamente sem querer. Elas descobriam então que queriam muito mais. Eles aquele mundo snob cheio de histórias, sem gente. Por tantas vezes, achaste que passava por ti o homem perfeito e desejaste que ele não tivesse passado. Querias um homem sem musa, querias um homem sem mágoa. A tua bagagem, porém, estava em todo o lado. Trazia-la colada às rugas dos olhos. Era uma tatuagem que te dava balanço nas direções erradas e que ostentavas como um troféu. Sofri assim e ganhei o direito a ir embora sempre que quisesse. E assim foi. Fomos contra toda a gente. Disseram que fora ódio, disseram que fora apenas aborrecimento. Aquele não era simplesmente o nosso lugar, e nós sentíamos, bem no centro do nosso útero, o tic-tac dos homens sem futuro. Era arrogância e nós sabíamo-lo. Talvez por isso nos tenha levado tanto tempo a escrever sobre isso. Já não havia amor em nada disto. Nem mesmo despeito. Havia talvez falta de fé, falta de um estrume convincente que alimentasse as perspetivas dele um dia se revelar o homem que procuravas. E tudo isso era insustentável, porque tu já não conseguias viver de fé, e porque tu já não conseguias viver de amor. À tua volta ficaram todas aquelas relações por acabar. As tantas que ainda recordas. Todas as noites te procuras enquanto revives tudo isso. O amor era afinal uma mentira e tu querias que desta vez fosse mentira por um homem extraordinário.
Mas não era.

17/04/2013

Cartas de Coimbra LVIII

Lembro-me do perigo dos meus repentes de choro, na mesa do almoço, quando os olhos dele me fugiam. Eu achava que era boa demais para ele. Ele achava que era tarde demais para os dois. As mãos dele avançavam nas minhas costas e arrependiam-se. Eu pagava a conta e saia. Tudo isto, sob a mesma vertingem de ir embora, sob a mesma infidelidade dormente nos ossos. Ele sabia que eu não queria mais ninguém.
Venci a vertingem e apertei-o no mesmo abraço com que o perdi. Deixei em cima da mesa todas as moedas polidas que trazia no bolso. Forcei-o a beber ao amor, ao jogo, ao tempo. Ao tempo que nós não tinhamos. Quis escrever as memórias dele por cima das minhas, e com isso salvar Coimbra, salvar o meu futuro, salvar-nos a nós. Daquele instante de cafés e cigarros, a minha história seguiu. Penso nele todos os dias, no rever das mesmas fotos.
Depois entendi a minha vida de temporária. As relações de encruzilhadas, as promessas de regressos, as histórias mal contadas. A inequívoca vontade de repetir homens que ficaram longe demais. A dormência de dormir de costas voltadas para as minhas escolhas. O mundo do outro lado do mar que cismava amor, que cismava futuro. As mesmas mãos geladas a eclodir nos mesmo vícios de sexo fingido. A preguiça de uma e de outra memória que eu nunca deixei partir. As malas desfeitas pela primeira vez em tanto, tanto tempo.

30/01/2013

Cartas de Coimbra LVII


Conheci-a em consulta. Era tão igual a todas as outras mulheres que batiam à porta da psiquiatria que eu não entendia porque é que esta chorava mais. Passou o cancro, passou o luto e agora chorava por um quelque chose que ninguém entendia. Tinha brincos grandes e olhos de um velho bonito. Eu olhava e não entendia porque é que não me revia naquela mulher e no entanto ela era eu, e no entanto ela queria falar que escrevia, e que escrevia escondida e que chorava um quelque chose todas as noites que ninguém entendia. Falava e negava uma raiva que eu - ironia! - conheci tão bem. O paradigma das mulheres que precisavam de ser mais mulheres e que por isso escreviam. Pensei naquele 6 de Novembro e nos 6's de Novembro que deixaram, eventualmente, de ser efemérides. Pensei no quanto adorava escrever e no quanto adorava escrever-te, e que, apesar de tudo, nunca conseguira escrever uma história. Talvez fosse apenas uma redenção tardia que eu procurava naquele 6 de Novembro. Ela dizia que Vingança era tudo o que ela não queria que aquilo fosse, e ela dizia que Vingança era tudo o que ela precisava. Ela dizia que precisava de valer mais. Que precisava de melhorar aqueles 10% de culpa e de amar mais o lado frio da cama. Que precisava dos remorsos dos outros, da tristeza dos outros, do espétaculo sombrio que é uma morte lamentada, quando não há nada a fazer. Ela queria não chorar à mesa do jantar. Queria sair e trair o marido, brincar às mulheres bonitas, deixar-se devorar por uma crise maníaca, e enfim morrer. Ela queria que a vida fosse uma outra coisa. Para ela, os dias passavam, as mães morriam, os filhos adultos ficavam orfãos e os filhos adultos não sabiam gerir-se num mundo sem mães. A segurança dava lugar à dormência de uma hierarquia de fim de vida.
Quem me dera a mim não chegar tão longe. Preciso ainda escrever uma história qualquer, fazer dinheiro com o destino errado dos homens, ir embora de novo e voltar pelo amor certo. Adormecer de tão velha nos braços de uma mãe não tão velha assim. Embalar os filhos dos meus homens (certos ou errados, tanto faz) e vir morrer em paz na foz do mesmo rio de sempre.