19/10/2009

Cartas de Coimbra XXXIV


Sentia-me à vontade em tudo, isso é verdade, mas ao mesmo tempo nada me satisfazia. Cada alegria fazia-me desejar outra. Ia de festa em festa. Acontecia-me dançar noites a fio, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Por vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, o meu desenfreamento, o violento abandono de cada qual, me lançavam para um arroubo ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me, no extremo da fadiga e no lapso de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas a fadiga desaparecia no dia seguinte e, com ela, o segredo; e eu atirava-me outra vez.


Albert Camus, in "A Queda"

06/10/2009

Cartas de Coimbra XXXIII

I wish you were here by *duchesse-2-Guermante



Às vezes volto àquela tarde de chuva, à porta de casa. Ao inadequado que era estarmos os dois sentados no chão da rua, com tanto que conversar. Tenho saudades da sensação boa, da expectativa, do medo miudinho a fazer daqueles dias um mapa de hipóteses que não se esgotavam. Tenho saudades do teu olhar baralhado, tão parvamente franco, tão erradamente deslumbrado. Quem me dera ser a mesma mulher que fui nesse dia. Chegava por mim própria. Era um quadro branco onde não existiam memórias, nem lugares, nem cheiros, nem coisa nenhuma. Contava apenas comigo e estava bem assim. Queriamos um beijo, apenas um beijo e formalizámos as coisas, com a estupidez de uma primeira vez. Estavamos feliz. Meu Deus, como tu estavas feliz! Disseste coisas, falaste em mundos, multiplicaste o sabor que levaste na boca e pediste-me mais. Eu dei-te tudo o que tinha. Sobraram bocadinhos de esperança que já não me alentam. Tenho os bolsos vazios, as costas dobradas, o peito pesado. Fico acordada com a luz apagada à espera de um pensamento que me faça dormir em paz. Não consigo acordar. Quero dormir para sempre.

01/10/2009

Cartas de Coimbra XXXII



Quem é que tu amas? - continuou Murphy. - Eu, tal como sou. Podes desejar o que não existe, não podes amá-lo. - Nada mal, para um Murphy. - Se assim é, por que diabo te esforças tanto para me modificar? Para poderes deixar de me amar - aqui, a voz subiu e atingiu uma nota bastante honrosa - para deixares de estar condenada a amar-me, para seres dispensada de me amar.



Samuel Beckett, in 'Murphy'