27/01/2009

Cartas de Coimbra XXI


Eu não contava que chovesse tanto. Tenho ainda a vida inteira para sentir a chuva e por isso eu não contava que hoje, logo hoje, chovesse tanto. Vi o dia chegar pela enésima vez com o trote do comboio. Dormi à espera de acordar já na viagem de regresso. Não me custa estar aqui, custa-me apenas estar longe. Longe do ócio que é parar o relógio e deitar-me contigo para sempre. Quando te olho assim tão perto vejo a vida a fugir-me e a ideia de que tudo o que era pleno, um dia acaba. Escondo-me debaixo dos teus braços, sei que te entrelaças em mim porque me sentes partir. É melhor assim e tu sentes alívio nisso. Vemos as horas a soluçar para nós depressa demais. O nosso amor foi sempre um amor de minutos contados. Hoje foi diferente. Condensados num espaço que era impossivelmente só nosso. Palpando no escuro respostas para todas as dúvidas que recaiem sobre o depois. Perguntamos a todos os beijos onde isto nos leva, onde isto acaba, como não sofrer depois de uma manhã de chuva assim. E quando sais por fim, fica o desejo de que todas aquelas promessas se transformem em motivações, de que todas essas motivações se transformem em respostas, e de que todas essas respostas nos mantenham jovens eternamente. Quando sais por fim, fica o cansaço no corpo, os olhos brilhantes, o meu cheiro e o teu. Fica o silêncio comprometido de um segredo que detruímos os dois. E um dia, quando eu voltar, vou puder olhar-te novamente e beijar-te, sem saber o que mudou desde a última vez. Vou querer saber o que tu nunca vais querer contar. Vou querer estar na tua vida sem que tu deixes. Vou querer voltar atrás e nunca ter sentido assim.

16/01/2009

Cartas de Coimbra XX

As intermitências que são dúvidas, que são limites, que é um destino de tentativas, que é um lugar melhor prometido a quem não foi capaz de lá chegar. O fermento de uma vida que criou em nós a necessidade de protecção, porque falhámos e porque nos cobram o valor que nunca foi nosso. Cair e recomeçar como parte fundamental da história. Sentir que o que fizemos foram gestos vagos, insuficientes, desviados. Não ter frutos. Lutar no universo das pessoas melhores, ser-se sempre pequenino, ser-se sempre dispensável. Às vezes vestimos a invisibilidade para que não se repare nas linhas a vermelho do nosso mundo. Se voltassemos atrás, fariamos diferente. Se voltassemos atrás, fariamos melhor. Mas é mentira. O corpo pregado ao chão pesa mais que a consciência e a vontade de andar. Pesa mais que a infinitude de lições que tirámos dos nossos erros e dos erros dos outros. Pesa mais que o medo de falhar, pesa quase tanto como o hábito de ficar para trás. O nosso corpo pregado ao chão pede socorro e não se acode a si próprio. Escreve poesia, chora o destino, inventa charadas, mas não corre atrás do ponteiro dos relógios. Sabe o tic-tac de cor, tem na boca o sabor das coisas bem faladas, mas não diz, não fala, não faz. O nosso corpo morreu na inércia de querer as coisas sem as conquistar. Morreu nas oportunidades desperdiçadas de fazer as coisas bem. Morreu no tempo esticado a jogar aos dados com a vida. O nosso corpo pregado ao chão perdeu a razão e nós com ele perdemos tudo o resto. Tomara que o relógio espere por nós, tomara que um dia a gente aprenda e corra atrás.

02/01/2009

Cartas de Lisboa VI


Existe uma ideia escondida na ponta dos teus dedos. Uma ideia que soletras na pele da minha mão fechada, no silêncio que é a tentativa de estar perto sem, de facto, estar. Lamento não saber fazer das coisas fáceis. Lembro-me do teu rosto e dos segredos que realmente me tocaram. Foi uma troca, amor. Uma troca de dias e de lugares, eu dei, tu deste, às vezes acho que demos tudo e ficamos sem nada. Amar-te foi talvez a escolha mais difícil. Ceder à tua vontade, aos teus momentos, à tua anarquia. Imprimir na minha ausência a necessidade de estar ligada. Chorar quando não podia. Fingir. Procurar-te nos sinais bizarros das ruas vazias. Sentir o teu contorno no meu quarto a meia luz. Viver com o teu cheiro misturado com o cheiro do mundo que ficou por conhecer. Amar-te foi também a escolha mais cruel. Prender-te. Prender-me. Permitir ao tempo duas vidas. Repetir os lugares, re-inventar as rotinas. Confiar de olhos vendados na promessa de qualquer coisa provisória. Estarmos juntos em vidas separadas. Chamar por ti num grito seco,dizer-te sem que me oiças. Viajar no vento, estar sempre de passagem. Olhar em frente e perceber. Perceber tudo. Perceber as coisas más, as decisões que nos mataram por dentro, a necessidade de mais soluções. Perceber o amor. A raiva. O sabor de um nó na garganta a travar-nos a voz. O assalto consentido de uma noite em que não ficaste para me ver dormir.
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You don’t understand me now,
I wonder if you ever will,
I wonder if you’ll ever try.
Don’t get sad about
All the strange things I wrote,
They faded as the ink dried…
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(D. Fonseca, I see the world through you)