24/04/2009

Cartas de Coimbra XXV

dissolve by ~colleenyancy

Na verdade esta sou eu, suspensa na paz que é uma vida com as contas pagas e o telefone sem saldo. os amigos cantaram-me um fado de dúvidas, tu ligas para dizer olá e deixas recado. é um registo de dias com maus timmings. gosto de músicas assobiadas. gosto das mãos nos bolsos, das camisas largas, do cabelo em desalinho falando alto a desinibição que não tenho. gosto do sexto sentido das nossas almas gémeas. dos olhos que nos atravessam e que nos dizem, num segundo, mil coisas, sem perguntas, cem respostas. falta-me tacto e, às vezes, faço os outros chorarem. há silêncios duros de aguentar e as palavras levam tempo demais a morrer. o medo é uma ideia gasta, uma música que ficou no ouvido. na verdade esta sou eu, nas paragens de autocarro vazias e frias. as histórias que temos para contar. as músicas e os homens da nossa vida, recuperados dum livro de memórias, de um momento de pouca fé que nos fez recuar e ter de novo 13 anos. penso todos os dias em voltar a dormir no teu corpo como se a eternidade se prolongasse ali e naquele momento, para sempre. os sentidos despertos, o roçar das mãos, o dedilhar dos dedos, o calor que nos queima e apetece, as texturas de todas as nossas preces. Perdoa-me mas às vezes não sou capaz de mais. sigo a ciência dos fortes e dos que sabem fingir. toda eu sou lembranças e coisas tristes. a tremenda e perspicaz vontade de chorar nas horas erradas. os medos que ficam para sempre. Para sempre.
O futuro chegou depressa demais. ontem tivemos os primeiros desgostos, ontem pensámos que nunca seríamos mulheres a sério, ontem tivemos medo de não crescer. o futuro chegou depressa demais e ninguém diria que ainda somos os mesmos. levo as mãos ao rosto e sinto-me igual. o mesmo medo de nunca ser uma mulher a sério. e nos intervalos do tempo, sinto as minhas nove vidas a esgotarem-se com o passar das horas. e faço delas um tributo aos nossos mortos, religiões aparte, apenas porque há lições de vida que só a morte nos dá, e uma delas é o Tempo.

16/04/2009

Cartas de Coimbra XXIV


Colecciono momentos. Momentos de estranheza e vergonha, quando as palavras certas faltaram. Momentos escondida no escuro do anonimato para que ninguém desse por mim. Colecciono flashes também. Flashes de dias nublados, de dias em que nos vimos no espelho e fingimos um olá; flashes de dias como o de hoje: o autocarro que não veio, a piada que morreu sem risos, o sorriso que não teve resposta. O calor de um embaraço, o silêncio a fechar a tua voz e a trancar o que, afinal, não quiseste dizer. Colecciono também imagens, contornos. Colecciono (acima de tudo) medos – o de ficar sozinha, o de estar sozinha, o de fingir e, apesar de tudo, saber que não vale a pena fingir. As pessoas leêm-nos e as pessoas sabem. Mas mesmo assim, não são como cromos nem como namorados, uma colecção completa de medos: medo de se ser de mais, medo de se ser de menos, para todos, para os melhores, para os que eu quero. O medo de falar, o medo de dedos apontados e de segredos contados aos ouvidos. O medo do que os outros pensam. O medo que a insegurança nos engula e faça de nós mentiras. Que a confiança não se conquiste, que a maldade seja um instinto, não uma escolha. Medo que seja tarde de mais, cedo de mais, uma questão redonda que comece e acabe no calor de um refúgio. E tudo transcrito, eu tenho um sonho, e desse sonho uma esperança vã. Um lugar soalheiro, perto do que me faz feliz, deitada nas searas de trigo que me prometeste, no esplendor de se ser velha e poder sentir as coisas como nos filmes. O tempo, a beleza de todas as memórias, o amor que cresceu e que é agora do tamanho das nossas boas decisões. Os filhos, os netos, os bisnetos. As promessas. As ideias que mudaram e que, por isso, acredito que mudarão novamente. A flexibilidade do mundo para que nos deixe criar a nossa vida a partir do pouco, exactamente da forma como a concebemos quando não tinhamos mais nada para além do sonho. E de novo de mãos dadas com o medo, eu tenho uma coleccção de medos que respeito e guardo sob a pele.
2 de Abril, 2009