01/12/2010

Cartas de Lille IX

De repente todas as escolhas se tornaram caminhos errados. Entre uma esquerda e uma direita, eu fui nas duas direcções. Estou ainda ofegante e sei agora que o cansaço foi todo ele vão, porque no fundo nunca saí do mesmo lugar. Tenho saudades de mim própria. Saudades de ser inteira. Dizem que soltar amarras e partir sozinha me encheu de tudo, mas ninguém fala disto que em mim se rompeu e me impede de estar perto ou longe de ti.
Eu hoje só queria voltar a casa. Voltar ao calor de uma avó que nunca nos pediu nada. Voltar à pele daquele Verão em Barcelona quando chuva e sol nos abraçavam em simultâneo. Voltar àquela noite sem maquilhagem ou expectativas quando a minha vida mudou sem eu saber.
Sinto-me partida. Não consigo voltar a Portugal, mas também não consigo ficar aqui. Sinto-me sozinha. A viver de intervalos de memória onde ninguém sabia quem eu era e por isso todos me podiam amar. Hoje sou o rasto queimado e flagrante de uma mulher que desprezo e lamento. Sou uma anedota para todos os homens que nalgum lugar me tocaram o cabelo e me fingiram dar a mão. O frio que nos mata vem de dentro e não se acalma com o calor de um segundo corpo. Revejo-me em flashes que nunca tive antes e sei finalmente que só queria que me protegesses de mim própria, do meu egoísmo e desta vontade visceral de me apaixonar. Perdoar-me será então o mais difícil dos passos. Perdoar-me e deixar a tristeza e o despeito cicatrizarem. Depois, enfim, voltar a fazer as malas e continuar à procurar o meu lugar.

30/11/2010

Cartas de Lille VIII



Eu tenho os meus segredos e planos secretos, Só abro para você mais ninguém.

Isto aqui é para ti e para mim. Não importa as portas que abrimos e as portas que fechamos e as decisões sem volta que tomamos. Não importa. Porque depois, no silêncio da noite, no regresso frio a casa, nas manhãs demoradas na minha cama... serás sempre o melhor de mim e estas serão sempre cartas de amor. Tenho saudades tuas.

19/11/2010

Cartas de Lille VII

Na última madrugada, deitei-me num mundo de realidades invertidas e hoje é já tarde para compensar o tempo e a energia perdida a tentar consertar o que não tem conserto. Fomos feitos um para o outro e de repente Paris era para mim a cidade perfeita para me apaixonar por um estranho e materializar ali, outra vez, todas as fantasias de uma pessoa que já não sou, faz tanto tempo.
Ele voltou para mim, sabes? Voltou para me dizer que tu me levaste, que tu te arriscaste na sorte que ele não quis, que tu me fazes feliz na maioria dos dias. Ele voltou com um bouquet de rosas murchas a repetir-me ao ouvido tudo o que não fomos porque eu te quis a ti. Em mim alguma coisa nasceu, nas lembranças que eu já não tinha, nas memórias que inventámos.
Agora estou sozinha e rasgo as ruas submersas de folhas de olhar vazio. A paisagem, não importa por onde vou, gela-nos brutalmente por dentro. Beleza de morte. Foi assim que me perdi em Paris e te procurei em todos os homens a quem cedi. Nesses entretantos, ele não veio e eu esperei até o frio me meter novamente no último comboio da noite. Tudo agora é uma indefinição de rostos, sabores e lugares. Nada se adequa. E depois ele pergunta-me o que quero eu afinal e na minha boca há ainda um misto de tristeza e adrenalina. Cerveja seria a resposta, como uma pontada de ironia que nenhum deles compreenderia. Eu quero-te a ti, como sempre quis, mas eu já não sou eu e eu já não sei quem sou. Eu já não sei quem tu és.

06/11/2010

Cartas de Lille VI


Estraguei tudo. A mistura do prazer mudo com a tua memória. O reggae injectado nas nossas veias. O regresso à terra. A impotência de saber exactamente o que se quer, agora sem dúvida nenhuma. Desculpa estar tão longe. Tudo isto é um labirinto de gente e eu ia bem até me perder e ficar sozinha outra vez. As guitarras calaram-se. Ficou aquele silêncio magoado do fim de uma era. Angústia, ansiedade, um eterno lamento. Sinto que uma oportunidade de uma vida me fugiu das mãos. Que a deixei cair, que a parti em demasiadas partes, que fiquei coberta com o pó, o cheiro e a cor de uma repetição de noites que eu não planeei. Foi uma miragem. Continuo eu mesma. Pacientemente deslumbrada com a mais pequena demonstração de afecto. Um corpo quente a arrefecer ideias na transparência de mais uma noite.

30/10/2010

Cartas de Lille V

Aquela era a última cerveja. Lembro-me dele perguntar qual a parte do meu corpo que gostava mais. Eu disse: os meus ombros. Ele disse: as minhas mãos. Ele perguntou qual era o meu apelido. A conversa derivou para qualquer coisa que eu já esqueci. Alguém dividiu uma cerveja comigo. Alguém dividiu mais três cervejas comigo. Alguém me trouxe a casa. Sobraram sensações e cheiros do mesmo bar de sempre, frases inacabadas ou que perderam sentido no volume da música. Talvez hoje eu reformulasse os diálogos, mas eu já não sei ser sóbria. Depois de dois meses, eu já não sei nem quem sou nem o que quero. Todas as manhãs ressaco na cama as loucuras que me propuseram. Apanhar o primeiro comboio que sair daqui e ao mesmo tempo ficar. Não depender financeiramente de ninguém e poder ir para outro sítio e poder começar do zero outra vez. Fazer do medo adrenalina. Quero demasiado que a minha vida e o que faço com ela valham a pena. Não importa se resolvemos seguir para um plano B ou plano C. Estou bêbeda de ansiedade e sinto que me movo com uma multidão de gente à minha volta a empurrar-me em todos os sentidos. Há demasiados braços e demasiadas bocas para me enlaçar e me prender. Mas ainda assim, sou e serei sempre um templo guardado para ti.

Já sinto tremores. Não quero pensar no quão doente estou. Pergunto-me se quando a alucinação parar, vão doer mais. Não me sinto cair, mas há aquela sensação permanente de vertigem. Eu sei que é apenas uma ressaca. Estou a refazer-me aos poucos, sentada no chão da lavandaria. Quero voltar a Paris, ao Porto, àquela sala vermelha que cheirava a incenso. Quero voltar a Bruxelas. Quero a liberdade de espírito dos homens que conheci aqui. Estou viciada em pessoas. A amizade já não chega. Tento sugar todo o magnetismo que têm. Meu Deus. Acho que vou estragar tudo. Há solidão nisto tudo e, ainda assim, tu estás sempre comigo e eu estou sempre contigo. No meio da noite, paro e o teu rosto conforta-me. Serás sempre a minha pessoa, mesmo quando voltas a casa e eu sei que ambos queríamos estar noutro lugar. Um dia, vais embora e não voltas mais. Não te desejo menos. Também tu te embriagaste na minha ausência. A China profunda, os olhos azuis e os olhos negros das mulheres da tua vida. Entre nós, há um acordo tácito de não falarmos delas nem deles. Amamo-nos e por isso não podemos negar vida um ao outro. Somos um abrigo juntos mas estamos sempre a partir. Consigo lembrar ainda os teus olhos e as tuas mãos cheias de vontade, o calor e o cheiro, as manobras e os detalhes que só tu conheces sobre mim. Às vezes tudo isto te assusta. A cumplicidade demasiado conformada que temos. Ninguém acredita que te amo, nem tão pouco sei se tu acreditas. Eu sei que vou a uma velocidade perigosa e que nada disto te cativa. Mas nem por um momento te larguei a mão. Os meus lábios continuam os teus.

05/10/2010

Cartas de Lille IV


E quase meia noite e esta é a minha primeira hora vazia desde ha quatro dias. Estou sentada com Bruxelas à minha frente, a tentar endireitar as ideias. Sou estrangeira sob todas as formas e hoje deslumbro-me com quase tudo. Tenho o Barco Negro de Amalia a cobrir-me o corpo, uma tarde inteira de acordes flamencos e aràbes a repetir-se em mim hà mais de 48 horas. A Europa na minha vida e Portugal tão presente. E Lisboa em todo o lado.

Talvez isto seja o que passarei a chamar de sensações eràsmicas. Sim, sensações eràsmicas. O platonismo de os apaixonarmos por uma guitarra e de vermos o desespero tomar conta de nòs. Perdi a conta ao vinho, ao champanhe, à cerveja. No peito abre-se uma vontade de viver sem precedentes. Uma vontade estranha de amar e de amar ao voltar a ouvir cantar o Fado. Tenho um imenso medo de quando todo o êxtase morrer. De quando sobrar uma memòria amarga colada à pele. De quando não puder sentir isto nunca mais. De me tornar demasiado banal para tudo isto. Não suporto não sentir a vida a acontecer-me, a inevitabilidade disso, a eminência disso. Como se fosse tudo irreal. Europa, Lille, Bruxelas, Marrocos, Irão, Italia, o Fado, o destino que não é o meu porque não sou uma mulher bonita. Fodasse, digo, porque aqui ninguém me entende. Por algumas horas, tudo fez sentido, tudo valeu a pena. E depois, é como se nos escorregasse das mãos e estivessemos de novo bêbedos por capricho. Se pudesse, arrancava a memòria e não sonharia nunca mais com os acordes de uma tarde assim. O cheiro da casa, o nevoeiro do chà, o embaraço da espera e do silêncio. Que Deus me ajude, que preciso esquecer.

28/09/2010

Cartas de Lille III

Foi então que me disseram para não tentar ser quem não sou. Para não tentar vencer num cenário que não é o meu. Lembrei-me disso ontem quando caia no primeiro sono. Gostava que isso se entranhasse mais fundo. Que me chegasse à génese das ideias e apagasse as memórias mais turvas. Quero esquecer tudo o que gostaria de ter feito, tudo o que fingi que podia ser. Não há fantasma pior que o da conformação. E é disso que falo no intervalo que existe entre o que sou e a forma de estar que gostaria de ter tido. Faltou-me a coragem, pergunto. Mas não. Faltou talvez, como falta hoje ainda, a capacidade de definição. Não consegui escolher qual dos mundos o meu e deixei-me tombar para o lado mais fácil, porque não suportava mais a corda bamba da indecisão.
Hoje visto ganga escura, tenho o cabelo apanhado, óculos de massa grossa e as sobrancelhar por fazer. Vejo filmes americanos, emociono-me com best-sellers mas não com Almodovar. Não sei ser feminina, mas esforço-me por isso. Quando me perguntam pelo que gosto de fazer, só me ocorre dizer que sou fingidamente simpática e que oiço indie-rock.Tenho um blogue, o mais irónico dos sinais do quão banal me tornei. Do quão desinteressante me tornei.
É uma pena. Aos 14 anos eu ouvia música folk, lia romances de autores desconhecidos, tinha uma lista de filmes antigos que queria ver. Aos 14 anos eu sabia mais de história, geografia e de Amália do que sei hoje. Sabia argumentar e tinha uma opinião sobre quase tudo. Era uma idealista, uma sonhadora. Era indiscutivelmente inteligente e não duvidava disso. Vestia-me mal, sem estilo próprio, mas ainda assim, era provavelmente melhor pessoa. Cantava Joan Baez nas viagens longas, achava que quando fosse "grande" me tornaria militante da esquerda e que acamparia todos os anos no Avante. Aos 14 anos eu escrevia com mais imaginação, mais paixão e melhores palavras. Escrevia com uma indignação maior: o mundo era simplesmente um sítio injusto.

Aos 14 anos, eu desconfiava que o sexo seria uma coisa boa, mas não necessariamente romantica. Tinha pressa, mas uma pressa ideológica. Guardava para mim tudo em que acreditava e acreditava realmente em tudo o que fazia.

Tenho saudades do magnetismo que tinha pelas coisas que realmente interessavam. Pelo fundamental. Preferia ser melhor do que feliz, a todo o custo. Hoje, como se a vida me tivesse ensinado seja o que for, prego o oposto. Sou mais feliz, mas vergonhosamente banal. Perdi ferramentas para dar passos em frente e tudo isso porque me tentei encaixar em todos os lugares. Ser doce, amarga e intensa ao mesmo tempo. Tornei-me uma sincera insonsa. Mas não posso pedir desculpa por isso.

24/09/2010

Cartas de Lille II

No tumulto da rua de todos os dias, somos muitos e todos pedimos consolo aos 3 euros de álcool que é quase sempre o nosso jantar. De repente alguém fala a nossa língua e de repente todos falamos a mesma língua e todas repetimos com frieza que não é amor o que nos falta, mas sexo, mas lascívia, mas qualquer coisa que não é amor. Estamos sentadas numa mesa redonda e há cigarros apagados, cervejas mortas, um inglês metálico e semi automático. Diria que estamos envergonhadas. Por termos a vida do avesso, contas pendentes, uma história de amor que em voz alta se tornou apenas num cliché. Sorrimos estupidamente quando alguém pergunta onde ficaram as noites de sexo furioso, as roupas rasgadas, as manhãs que não tinham horas, quando o nosso quarto era um sítio quente e com vida. Olhamos para o fundo do copo vazio e quase em simultâneo para o fundo da carteira vazia. Porra. Fechamos a loja por hoje. Sentimos raiva na bebedeira insatisfeita que não podemos comprar. Na felicidade que os burros dizem que não podemos comprar. Nem com um bilhete de regresso a casa. E aí reside todo o paradigma. Isto já não é sobre esta França que nos suga o dinheiro e a felicidade. Isto é tristeza que trazemos colada a pele, não importa onde e com quem dormimos. Isto é querer ser feliz, de uma maneira ou de outra, cada vez com menos detalhes.

O silêncio pesa-nos finalmente porque voltamos quase sempre sozinhas a casa. Estamos absolutamente geladas. Queremos chorar mas fingimos que ainda não chegou a nossa hora. Somos tesas, pensamos. Somos exactamente como queriamos ser aos 14 anos. Somos cansativamente apaixonadas, pesarosamente irracionais. Temos medo de estar sozinhas e usamos boinas ridiculas de lã. Um único par de ténis rotos a esboçar a ideia que temos de nós próprias. Já não temos 14 anos e já não queremos fingir que somos intelectuais. Temos apenas 20 anos e perdemos toda a coragem.

05/09/2010

Cartas de Lille I

Eu já cá estou. Sinto-te comigo a cada instante. Não importa quanto te hei-de odiar um dia, hoje agradeço por seres, por mim, mais que tu próprio. Não importa a cama onde (não) estivemos juntos, esta será sempre a nossa casa. Esta será sempre a minha casa. Esta serei sempre eu própria.

A velocidade dos dias é brutal. A informação imensa a fluir a todas as horas, de noite e de dia. A logísitica de ser uma estrangeira a tempo inteiro e para todos. O destruir barreiras que se re-erguem todos os dias. A impressão que apenas a cerveja nos abre portas, quando na verdade as fecha. O frio que só eu sinto. O medo invisível. O cansaço de todas as manhãs. A água quente a jorrar no corpo gelado pela impessoalidade dos corredores. As pessoas que quisemos que fizessem parte da história. A solidão que será sempre uma constante, não importa a latitude. Somos afinal livros demasiado brancos, espelhos sem reflexo, tempo perdido. Todos os dias acordo à tua espera. Um dia hei-de voltar e nunca mais ir embora.

25/08/2010

Cartas de Lisboa XII

by ~nikolinelr
Vamos ser patéticos. Sinto-me sozinha. Dentro de dois dias vou viver para outro país. Queria emoção nas despedidas, comoção, tristeza, as últimas conversas com os amigos e os conhecidos que nos apoiam e vão sentir a nossa falta. Mas não foi assim. Não é assim. Para mim, houve apenas uma palmadinha nas costas, um sorriso circunstancial e um Bone voyage arrotado sem me olharem na cara. Já experimentei o espalhafato. Todas as formas de desespero: “hey estou de partida, ninguém vai sentir a minha falta?”. Pois, ninguém. Sou a miúda transparente. A que não se vê, a que não aquece nem arrefece ninguém. Tenho muita inveja, por menos politicamente correcto que isso seja. Tenho inveja dos que terão um pequeno exército a torcer para que voltem depressa. Dos que se sentem queridos e apoiados. Porque no fundo, o problema é esse. É ir embora, forçar os nossos limites e não sentirmos apoio à retaguarda.
Afinal, isto tem tudo para correr mal.

15/08/2010

Cartas de Lisboa XI

O que mói é que as pessoas para quem esperávamos ser especiais fazem todos em volta serem especiais. Será ciúme? Todas as minhas histórias têm pontas soltas. Eu tentei cortá-las, mas acabei por fazer pior. E é mesmo assim que vou embora.

31/07/2010

Cartas de Coimbra XLVII, a última

Desde o instante que em que o larguei que ainda não parei de chorar. Foi a última das madrugadas. Deitei-me para não dormir e levantei-me sem querer ir embora. Não sei fazer isto de outra maneira. Há coisas que nos roiem por dentro e não conseguia dizer-lhe porquê. Deixei Coimbra há horas e sinto-me desfeita. Talvez porque não tive nem voltarei a ter um regresso a casa. Já não sei para o que voltei, e tu nem sem quer cá estás. Voltei cheia de uma pressa que não tinha, com toda a bagagem emocional que as despedidas tinham e eu não sabia. Desde o instante em que o larguei que ainda não parei de chorar. Não dormi um minuto que seja. Fiquei bloqueada algures no corredor frio da Associação de Estudantes. Bloqueada no segundo em que o vi surgir. Eu juro que nunca me passou pela cabeça que ia ser assim. Há despedidas que nos parecem mais definitivas que outras. Sinto-me partida. Continuo a chorar e já estou tão longe. As últimas frases, os derradeiros minutos, os abraços repelidos porque as nossas próprias escolhas nos trairam, a impessoalidade com que dizemos que lhes estamos gratos por tudo, mas o que custa é o que não dissemos, é o que não ouvimos. Os copos de vinho que não levantamos pela última vez. Os gestos que significam tudo mas que tivemos vergonha que fossem demasiado. A Cabra. A capa rasgada dos amigos. As lágrimas dos amigos. A ironia dos amigos. A coragem que não é coragem, mas medo, abandono e remorso. O livro aberto que fingimos ser. Coimbra que hoje pouco ou nada importa, porque ficámos desmembrados, vazios, entorpecidos, sem vontade. Virámos costa e não voltamos a olhar para trás nunca mais.

20/07/2010

Cartas de Coimbra XLVI

Sommeil by moumine
Dizem que a pior insónia é a da indecisão. Eu há 201 noites que não durmo. Faço por tornar simples a angústia mas de repente são novamente três da manhã e nada mudou.
Faltam 39 dias. Destes passarei menos de metade contigo e desta metade serão muito menos que algumas horas.
Hoje não consigo ser sensível. Estou a tentar escrever sem que seja preciso chorar. Eu hoje só queria dormir. Só queria que a angústia se fosse embora. Que o medo e angústia se fossem embora.
Estou a dar um salto no escuro e a sofrer as consequências por antecipação. Isto já não é sobre nós, sabes? É sobre mim. As pessoas não acreditam que eu seja capaz e eu também não. As pessoas dizem que é capricho. Eu digo que é estupidez. Não, realmente eu não falo francês e decidi viver um ano sozinha em França. Tu não vais lá estar (nem ele), sob forma nenhuma, porque a isso não te podes comprometer. Mas a minha vida vai girar continuamente em torno de ti, pois a única convicção que veio com a insónia foi a de te amar em qualquer circunstância, sob absolutamente nenhum pretexto.
4h00. A angústia ficou de repente mais pequenina, mas ela acaba sempre por voltar. Tenho medo. Mais. Estou completamente aterrorizada. Qual coragem! Tudo isto (um dia vais concordar)... Tudo isto não passa de uma valente lotaria. E tudo isto me lembra que um dia tive o descaramento de querer ser médica, sem, no entanto, caber no molde das pessoas que querem ser médicas. Que um dia tive pressa de sair de casa, que um dia tive vontade de ser visível ao teus olhos. Para sempre.
Como vês, afinal, não parei um só dia de sonhar. Talvez seja daí que venha toda a angústia. Tivesse eu realmente coragem e não voltaria a sonhar nunca mais.

26/06/2010

Cartas de Coimbra XLV


Às vezes perco a perspectiva. A idade aconteceu, os cenários mudaram, fui feliz das formas mais absurdas. Deixei para trás um buraco de recordações que preferia não ter para te contar. Uma menina de casaco vermelho e mãos nos bolsos. Uma menina invisível.
Quando penso nisso, volto irremediavelmente àquela tarde de Verão, deitada aos pés da cama. Já lá vão talvez seis anos. Nessa tarde, escrevi que um dia tudo seria melhor. Eu seria melhor. Teria, como tantas vezes te disse, o mundo à cabeceira. Um perfeito vazio de expectativas.
A idade aconteceu e sou hoje como prometi ser aos 14 anos. Fui mais longe do que isso. Tenho o meu espaço, a minha voz, as minhas histórias. Não tenho casa. Tenho a melancolia pendular das viagens de comboio. Estou no melhor lugar do mundo quando se tem 20 anos. Sou sozinha. Amo-te exactamente como imaginei que te amaria um dia.
Contudo, a idade aconteceu e hoje sou ainda uma menina invisível. Tenho voz, mas não tenho palmas. Histórias mas não carisma. Sou crítica e, no fundo, uma permanente desasjustada. O problema serei certamente eu mesma. Ou não passaremos quase todos de más pessoas. Às vezes tenho a certeza que conseguem ver através de mim, como se eu não estivesse de facto ali. Fazem de mim pequenina e eu torno-me minúscula. Fiz demasiadas asneiras. Achei que o álcool mudaria tudo e eu seria finalmente uma mulher diferente. Mas nós nunca roubamos nada da própria vida. Nós roubamos da vida dos outros e eu roubei a esperança que não era minha. As frases feitas. As festas académicas. Os amigos. Nada disso é realmente meu. Pessoas como eu não têm vidas assim. Não em Lisboa, não em Coimbra, não em lugar nenhum, por mais longe que consigamos ir
. E eu fui demasiado longe para descobrir isso.

23/05/2010

Cartas de Coimbra XLIV

Nós perdemos sempre, amor. Perdemos sempre. Viajamos os dois em contra-corrente, com o metal dos comboios dissolvido nas veias e já não temos casa. Somos a casa um do outro e tomamos decisões para que isso nunca nos amarre. Vou viver para outro país porque te amo e quero que descubras tudo o que eventualmente há para além de nós. Eu sei que é o mais certo, mas tenho muito medo. Fecho os olhos e descubro os últimos três anos da minha vida, escondida contigo na sombra de mais um jardim de Lisboa. Ou de Coimbra. Ou a minha cama desfeita, amarfanhada, dividida em dois. Estou tão cansada. Tão cansada. Tirei-te a alma quando te disse que vou embora. E tu sentiste que eu morri nesse momento. Ainda custa a acreditar, mas não, nós não fomos feitos um para o outro.

11/05/2010

Cartas de Coimbra XLIII


Definitivamente uma cidade de segredos. Pela 3ª vez, abraçou-me à sua maneira e eu respondi-lhe ao meu jeito. Quem me dera que as memórias nos aquecessem tanto daqui para frente como a Queima nos aquece hoje. Porque a Queima das Fitas não se dá a entender aos mirones que vêem de fora ver o que não conseguem ver. A Queima das Fitas é dos apaixonados. Dos resistentes. Dos que bebem aos Amigos, aos segredos de Coimbra, às histórias que aconteceram dentro de nós próprios e que nos ensinaram, no fundo, o mais importante. De 2010 vou levar as escadarias das Igrejas, as capas negras sobre as pernas cansadas, as longas conversas que as madrugadas de espera perpetuaram. Vou levar o mais fantástico concerto à chuva e, por isso mesmo, uma alma lavada. Vou levar os momentos de confusão onde o coração pediu mais tempo. Um cortejo feito no braços dos amigos. Os post-its deixados na capa dos livros antes de nos afogarmos nas noites do Parque. As palavras que quase dissemos porque havia talvez amor em toda a cerveja que bebemos. E no final de nove noites, eu sei que nada terá mudado e que tudo o que vivemos durante a semana será enterrado com a normalidade de uma vida que continuamos a empurrar, alheia a tudo. Vamos olhar para a transparência dos outros e vamos sentir-nos agradecidos por Coimbra ter feito parte do caminho.

23/04/2010

Cartas de Coimbra XLII

paris .3. by ~moumine

Sou certamente uma má jogadora de tetris. O acumular de pecinhas na confusão que se torna para mim não poder fazer linhas de uma só cor. As peças são as fontes de conflito: os comboios, os horários dos comboios, os fins de semana de um dia, as aulas da segunda feira, os outros, a sensibilidade dos outros, a falta de tacto dos outros. Não trago o mundo às costas, mas comporto-me como se trouxesse comigo um atrelado de grandes dimensões. Bloqueei de tanto cliché que tentei processar de uma só vez. Foi talvez demais para uma mulher só. Hoje todos queremos fazer erasmus, todos queremos ser missionários, todos queremos ser pediatras. Isto assim já me chegava. Mas além disso, há as dietas, as bebedeiras, os bares bem frequentados, os interrails, a falta de tempo, a falta de sexo. Fizemos dos conceitos mais nobres lugares comuns com uma profunda e absurda falta de consistência. É tudo para inglês ver. Ou pelo menos uma boa parte. Somos gente demasiado obcecada em passar a perna aos outros antes que nos passem a nós. O despeito foge-nos das mãos quando não somos tão tapados quanto os outros. Somos espertos e muito pouco inteligentes. Perspicazes e corruptos. Filhos de médicos. Filhos de Professores. Nenhum de nós leu Mircea Eliade e isso só nos fez foi mal. Aqui dar umas passas já nem sequer é moda. É desespero. E meter cunha que esmiúce o desespero é estar ambientado e saber estar. Não sabemos pensar, nem ficar para trás, nem pedir licença. O mundo gira a nossa volta e já há virgens de lua de mel marcada. Mais um dia assim e fico esquizofrénica.

09/03/2010

Cartas de Coimbra XLI

by ~firar

Querido Luís,
Estas cartas são tuas. Escrevi-as talvez desde sempre. O papel de rascunho, o balançar do comboio, o timbre único da voz do Doherty. Está tudo nestas cartas. A minha vida inteira, virada do avesso, rasurada como se as palavras francas não soubessem que são poesia.
São cartas de amor, mas principalmente cartas para te revelar o que existe diante e por detrás dos meus olhos. Sempre te disse que vejo demais. Mas nunca te disse que o que vejo normalmente são coisas irrepetíveis e por isso tudo nestas cartas são também segredos. Abrir mão e falar-te deles é para mim a mais difícil prova de confiança.
O que aprendi contigo nunca mais poderei repetir. Sabemos, simplesmente sabemos, que estes foram os nossos melhores anos. E deles ficarão os cheiros, os sabores, a pele arrepiada e fria, as viagens de ida e as viagens de volta. Ficará também o medo de cair, o medo de, todas as semanas e todos os dias, partir para longe de ti e de, com isso, partir para longe do meu último lugar seguro. Ir embora será sempre motivo de luta interior, um estado permanente de guerra comigo, contigo e com o mundo. Mas amar-te precisará talvez sempre disto, desta forma calada de dizer-te por sinais de fogo quais as batalhas que escolhi e quantas ganhei. Nunca, em momento algum, tentei magoar-te. Seria atacar a mais vibrante das convicções que trago comigo. E nestas cartas dou-te o reflexo de tudo o que tenho de mim própria, os limites e as razões de todas as angústias, de todos os receios, de todas as promessas, de todas as histórias que fizeram sentido, porque te amava, de olhos mais ou menos fechados.

04/03/2010

Cartas de Coimbra XL


Se ter um blog é ter palavra, a minha palavra hoje é SEXO. Desculpem lá qualque coisinha, mas se tenho um blog, quero contar a minha história e a minha versão dos factos. Não consigo viver espartilhada nas minhas boas e más experiências sexuais e resignada ao facto de nem toda a gente ter bons ouvidos para o tema. Perversão para mim é corromper o que somos com mentiras, com preconceitos, com pressa. A confiança é tudo. E depois disso, o limite somos nós que o escolhemos.
Não trazemos escrito na testa o que fizemos ou gostaríamos de ter feito ontem à noite. Talvez os outros se surpreendessem com o que guardamos portas a dentro. De qualquer forma, o que não aceitam é que queiramos discutir isso na praça pública. Curiosamente é exactamente isso que tenho feito. Por descuido, claro está, porque eu achava que falava a gente amiga. Depois ficou a pairar o desconforto. E dei por mim culpada de três goles de vinho que me fizeram falar o que preferia ter falado sóbria. Dei por mim culpada de algo que encarava com tranquilidade até me dizerem, com o silêncio, que há tabus aos 20 anos totalmente intrasponíveis.
Ah e o título do post é pura coincidência.

17/02/2010

Cartas de Lisboa X


Às vezes damo-nos conta que as circunstâncias nos dão sinal de que chegámos novamente ao ponto de ruptura. A partir daqui, não seremos nunca mais felizes para sempre, não seremos mais razoáveis, não seremos mais pacientes. Lemos nas entre-linhas, nos filmes a preto e branco e nas conversas de café, frases que deambulam de boca em boca e falam do fatalismo a que não nos conseguimos habituar. Por mais que tente e me mostre calma, não há serão nem copo de vinho que tornem a ideia mais doce. Prometi a mim própria que iria para longe por querer, mais que tudo, ficar. Mas apesar de tudo, tenho medo de ficar por ti. Viver desligada, nunca foi real para mim. E tu sabe-lo. E mesmo assim eu finjo. Temos passado a vida inteira a fugir, a tomar decisões que nos empurram em direcções opostas. Eu amo-te. Com todo o lixo emocional e logistico que isso implica. E estas nunca deixaram de ser cartas de amor. Por mais longe ou por mais perto que estejas.

22/01/2010

Cartas de Coimbra XXXIX

maybe by ~koffk
23h00. Tenho a casa vazia, a sensação de que me falta tudo, que um mundo melhor ficou lá fora quando eu resolvi fugir para aqui. Ando de trás para a frente à procura de um interruptor que mude o curso dos dias, à procura de vida nas divisões fechadas à chave. Não sei para onde foram as pessoas que foram embora. Não sei para onde foram as pessoas que foram embora sem mim.
02h00. Viajo de lugar em lugar. A internet é um mundo demasiado extenso onde cabem todas os vícios que eu poderia ter. É fatal. Já vi todas as fotos que tirámos juntos, já li o blog inteiro, já ouvi todas as músicas que me poderiam magoar, já remoí todas as memórias más. Estou entre a parede e a inércia. Bloqueada no meu próprio cemitério, onde se encaixotaram os fantasmas, as perseguições, os medos.
03h00. A certa altura, nesta noite que aparentemente nunca vai acabar, acabei por adormecer. De olhos inchados, boca seca, cabeça dormente. Só quero não acordar nunca mais. Não sei o que se passa. Os meus sonhos já não são corridas contra o tempo, mas causas perdidas. Mas consequências daquelas noites impetuosas em que tudo se podia dizer e de repente eramos reféns dos nossos instantes de tristeza.
08h30. Acordei e adormeci novamente. Seria fácil dar um empurrão à própria vida, dizem. Bastaria talvez ter deixado o despertador tocar até ser forçada a seguir em frente. Quem me dera perceber onde tudo isto me leva e parar a tempo. Quem me dera perceber de onde veio isto tudo. Quero continuar a dormir.

10/01/2010

Cartas de Coimbra XXXVIII

The calm before the storm by ~Ninruz


Durmo devagar porque preciso de toda a paz para ver a vida em retrospectiva, sem que isso me pare. É o medo de que todos falam, a desconfiança que nos forra o coração, a desventura de acreditar em coisas reais, que moram na porta ao lado e nos tiram o prazer de quase tudo. Os empurrões das multidões deixam-me quase sempre indisponível para estar bem. Já esgotei todas as caras com que podia fingir, já usei todas as frases de conveniência. Do outro lado da estrada, sinto o frio de um mundo que nasceu da nossa arrogância e principalmente do nosso desespero. Não foi isto que eu escolhi para mim. Não foi isto que eu desejei a ninguém.
Na última noite do ano, não contei as doze badaladas, bebi o meu e o teu champanhe, chorei e disse o que não sentia. Tive a certeza que ires embora será, um dia, a coisa mais anti-natural que me poderão fazer. Mas acabarei por me habituar à ideia.
À meia noite estavas lá tu, e a chuva, e o barulho, e o frio. Estavam as coisas irrelevantes, a cidade e a nossa própria estupidez. Demos por nós a tropeçar nos lugares onde nunca quisemos voltar. A desafiar o tempo, a fragilidade dos nossos momentos, as promessas que não podemos nem devemos cumprir. O que eu não sei, dificilmente me magoará e por isso fazemos de conta que a eternidade nos cabe nas mãos cada vez que trocamos novamente um primeiro beijo. Já não sou capaz de mentir, nem de tornar as coisas mais fáceis. Tocar-te já não me queima apenas por fora. Quero a parte de ti que não tens para dar. A tua fé, a tua tranquilidade. No fundo, não é que isso tenha importância, porque não tem. Um dia deixo-te e deixo-te exactamente porque te amo. Nas entre-linhas, é isso que me pedes e eu escuto o que tu dizes, mesmo que não pareça. Eu só queria um lugar onde não houvessem batalhas, nem abismos, nem tempestades. E gostava que esse lugar fosses tu. Mas acabarei por me habituar à ideia.