22/09/2014

Cartas de Évora VIII

verre de soie. by moumine
Pudesse eu ao menos contar-te como foi acordar naquela manhã, depois de ti, depois de mim. Pudesse eu explicar-te como foi acordar para ti todos os dias da minha vida. Como foi enfrentar o vazio que era, e sou ainda, percebendo enfim que foste apenas um acaso, que eu fui apenas uma das tuas distâncias, que os teus desejos eram de aguarela, de uma pesada insónia, que nem eu nem ninguém conseguiamos mudar. Pudesse eu explicar-te como mudaste a minha vida, muito além daquela última carta que te escrevi – a única que cheguei de facto a enviar, sem nunca ter tido resposta.
E o teu silêncio não me traz paz. Tudo se tornou corrosivo – a chuva, as manhãs, os lugares que nunca verás. Eu queria contar-te a minha história, queria tanto!, mas não tinhamos idioma comum, um que em que realmente nos encontrássemos os dois, um em que me lesses por detrás das vírgulas. Queria que acreditasses que me salvaste, por um acaso. E que a memória dessa noite me salvou nos quatro anos que se seguiram.
Hoje já não existo, nem para ti, nem para mim própria. Estou ainda naquele segundo andar em Wazemmes a ouvir-te tocar. Foi um rompante de magia – e eu não consegui lidar com isso. Achei que sim. Achei que eram todas essas memórias (inventadas?) que me tiravam da cama de manhã; que me moldavam para ti, sem nunca desejar realmente repetir-te. Não foi certamente paixão. Foi uma outra coisa; talvez o embate da ingenuidade dos meus vinte anos com a honestidade da tua vida sem fronteiras. Não sei, nunca o soube.
Até nunca mais, dir-te-ia, se tivesse coragem - mas amanhã, novamente, vou procurar-te em todos os estranhos do mundo e viver a decepção um dia de cada vez.


26/07/2014

Cartas de Évora VII

Depois de tanto tempo - uma década, talvez, ele estava no meu sonho. Mas, magia por magia, ele já não era ele, a magia era outra e a minha ausência um facilitador de sonhos - só que este amor era ainda terno e calmo e fresco. Só que este amor tinha ainda 20 anos e o mesmo medo de falhar.
Pensei: talvez devesse voltar a vê-lo, talvez devesse escrever-lhe, talvez devesse contar-lhe. Toda a nossa vida era uma vertigem de partidas - e só a memória dele me valia. E de repente, ele estava de corpo e voz dentro de mim, tal e qual como da primeira vez. Como talvez tivesse estado sempre: no mais impenetrável dos sonos, na mais sincera das memórias. Eu e ele, naquele segundo andar em Wazemmes. Eu e ele, sob o mesmo guarda-chuva, sob o mesmo Setembro. Sob o mesmo Setembro de onde nunca saí, ao qual me moldei - devoção, música e encanto - eu procurava-te em todas as esquina e, sem querer, um ano se passou, sem que tivéssemos voltado àquele Setembro em Wazemmes. E de repente, estava tudo dentro do que podia até ser um pesadelo, o perder-lo de novo, várias vezes na mesma noite, o perde-lo no materializar do primeiro cheiro, no materializar do primeiro toque. O perde-lo ao primeiro sinal de fraude.

Da última vez que o vi, deixou-me um quadro assinado por ele - que eu perdi nas mudanças. No verso dizia «quão raro e maravilhoso era ter a certeza que conhecemos alguém».
Hoje de manhã escreveu-me de novo e disse-me que ia chegar.

02/06/2014

Cartas de Évora VI

reflet. by moumine
Foi tudo há tanto tempo. Não consigo amar-te como amei o mundo e como sinto o mundo em estilhaços dentro do que me resta. Toda eu minada de lugares onde não podes entrar. São segredos e são histórias e são canções que já ninguém sabe tocar. A mesma memória, todas as manhãs. Como se não eu não tivesse acontecido de tantas outras formas. Os últimos quatro anos para nada. Só o desejo de voltar, só o desejo de ir. O prender-me dia após dia àquela tarde em Wazemmes. O esquecer-me para me lembrar. Tu de costas voltadas. Tu na minha boca. Tu tão longe. São meses e anos e hoje como naquela noite em São Paulo. E hoje como naquele cemitério em Paris. Ainda te odeio e ainda te amo de formas que não consigo entender. Preciso ver-te e preciso tirar-te da minha vida. Como a cruz que és. Um eterno fim por concretizar. Fui uma pessoa melhor porque te tinha, porque não te tinha, porque o tinha a ele, mas principalmente porque sempre o terei. O lugar na terra que repetirei por saudade todas as manhãs, até que a consciência me deixe. Não sei que amor é este, mas faz-me bem e adia a tristeza que és ainda na minha vida.

Foi tudo há demasiado tempo.

22/05/2014

Cartas de Évora V

Quero contar-te que conheci um homem maior que tu. Foi talvez por fugir disso que naquela noite me viste no Porto, de mini Super Bock na mão, a fingir que não te vira. Sem ele, eu nunca seria uma mulher disponível para quebrar o gelo. Com ele, toda a minha vida se tornou perplexidade, vontade de ir embora, desejo de saber quem eras. Procurei-o em mim sempre que nada valia a pena - a lembrança nublada de várias Leffes ainda hoje me fazem continuar. Ele era o homem da guitarra. A cidade inteira sabia que o amava para lá do razoável - e que o amaria sempre, pela simples razão de que nós não nos conhecíamos, não de verdade. E isso pouco me importava. Era um amor que me mantinha em marcha. Que me mantinha. Era uma lembrança recriada à qual me agarrei quando me tiraste da tua vida.
Porque ele era um homem maior, muito maior que tu. Na tua ausência, eu fazia-me pequena e escondia-me o melhor que podia dentro das noites. Era a ausência dele que me acordava. 
Há dois meses escrevi-lhe: queria-o na minha vida, desta vez, a sério. Há pessoas que nunca se vão realmente embora e ele podia até ser uma delas, mas desta vez, eu queria-o aqui. Queria-o em Lisboa. Queria a voz dele em Lisboa, com as respectivas rugas de expressão e com a devida bagagem. 

21/04/2014

Cartas de Évora IV

Dei-me conta que não voltei ao Porto desde o dia em que nos conhecemos. Hoje, ao refazer a mala, descobri-me demasiadamente amarrada, com o peso de um para sempre que subsiste aos lutos que te fiz, com o desespero que é lembrar-me do que ficou por nos acontecer.
Encontrei fotos do hotel onde te vi pela primeira vez e percebi que te escreverei cartas até morrer. Foi por despeito, por negação e por raiva e hoje escrevo-te finalmente por tristeza. Sinto-te no balançar de todas as minhas viagens, em todos os homens de sotaque, em todos os cais de partida.
Percebi enfim que te amei demasiadas vezes, muitas mais do que as que materializei. Dei-te o melhor de mim, durante demasiados anos, e ainda ontem, o meu avião tocava na pista e eu deixava as lágrimas correr, indiferente ao molhado que desenhava no pescoço, no colarinho da camisa, na minha vida.
Trai três homens contigo e só do último te arrependeste. Foste sempre uma mentira na minha história - uma mentira porque ninguém acreditaria na nossa verdade.
Hoje sei, enfim, que te levarei sempre comigo. Acordarei todas as manhãs perguntando que horas serão no teu fuso horário. Perguntando se terás visto aquele filme, se conhecerias aquela música. Não concebo mais que te voltarei a ver - a negação foi embora, finalmente. Mas continuarei a procurar-te em todos os estranhos do mundo, em todos os bancos de aeroporto, em todas as filas de trânsito.

18/03/2014

Carta a Paris

Rues de Paris by Laurentlesax
A ti.

Não faria sentido lembrar-te, ou não fosses talvez o compasso de espera que nunca se justificou – nunca vieste, nunca soube porquê. Eu tinha afinal 20 anos e tremi por várias meias horas numa Paris à chuva. Não te confundo com a ausência dele, mas talvez com a miragem de uma vida que teria acontecido diferente se tivesses vindo. Éramos todo aquele potencial que eu sentia – em delírio, talvez –, que me formigava os ombros, atraiçoava as mãos, adiava o sono. Acreditei piamente que aquela podia ser a minha história – não a nossa, mas a minha. Quase à hora de fecho, desci e subi várias vezes o Père-Lachaise.  Pergunto-me como me explicarias naquele cenário. Trazia-te gelado comigo, na tentativa de não te prever, de fingir que não te esperei a vida inteira. Mas esperei.
Tudo isto foi real. Naquela noite, sobraram em mim – e em ti, sem dúvida – todas aquelas madrugadas que me prometeste. Era assim mesmo, dir-te-ia – naquela altura eu não chorava como agora. Fui embora e não voltei a Paris. Continuo o luto porque desejei aquela “história-triste-que-daria-boas-cartas”, mais do que tudo. Mais do que a ti. Investi toda a honestidade e traição e vergonha que trouxe daquela noite, na vertigem que seria viver-te de novo. Tenho-te raiva. Sinto-me longe de tudo o que fui, quando querer-te era um engano. Preciso continuamente de ir embora e esquecer que me falhaste, que eu te falhei, que eu nunca fui o que precisaste. Esquece o atrito. Esquece a rotina. Não havia nada disso – tenho a certeza – quando naquela noite te esperei na sombra dos monumentos.  Foi no dia 13 de Novembro de 2010. Perdoei-te esse dia, e os outros. Por favor, não me esqueças. Tu não me escolheste, mas eu escolhi-te (escolho-te) em todas as insónias. Fui feita para todas as portas que me fechaste, para todos os sambas que eu não dancei, para todas as cartas sem resposta, para todos os homens que chamei de outros.

Por favor, não me esqueças.

01/03/2014

Cartas de Évora III



Os fins como te lembras deles. A necessidade de queimares tudo à tua volta e encheres a tua vida com a cinza do que já não és. Foi sempre assim. O frio, a velocidade dos dias, os nomes que esqueceste. Estás a correr em direcção à neutralidade de um passado que nunca enterraste - precisas de ar, precisas de tempo. A música de outros dias dissolvida na angústia de todas as paragens de comboio que viveste. Falta-te o metal, as travagens, os estranhos sentados à janela. Falta-te a guitarra dele - o melhor dos inícios da tua vida. Já morreste de felicidade sem perceberes. Era amor, ou tanto faz. Eras tu a favor do mundo, sem decisões, sem espaço para remorsos. Eras tu, apaixonada sem risco, adiando crenças, relativizando a leveza com que as melhores pessoas entraram na tua vida. Queres, mais que tudo, voltar atrás. Reviver. A liberdade das noites cheias de neve, os passeios vazios de gente, a confiança dos teus passos. 

04/02/2014

Cartas de Évora II



A tua memória é puro erotismo, na maioria dos dias. Eu vou de vestido vermelho e salto alto. Cheiro bem, estou de passagem e quis o acaso que te encontrasse outra vez - seria Milão, São Paulo? Não sei. Tanto faz. No resto dos dias, acordo de olhos vermelhos, escondida no perigo que é viver-te a tantos quilómetros de distância, a tantos dias de silêncio. Não entendo o que nos aconteceu. O que me aconteceu. A gente vai cruzando países e já qualquer homem nos serve e eis que, de repente, que não, que tinhas de ser tu, que todos os outros te ficam na sombra e tu nem eras excepcional como prometido. Faço calçadas e calçadas de ruas, perguntando às pedras se trocámos o orgulho por paixão, o despeito por promessa. O teu rosto, o teu nome, o teu sabor. Lembrar-te é quase pecado. Fazes-me falta onde nunca exististe. O teu lugar é no meu corpo e o meu lugar não é nenhum. Choro porque sim, por teimosia, por não poder largar-te, não ainda. A tua memória é puro erotismo e eu preciso dela - depois dela, não há mais nada. Depois dela, já nada me interessa.
Tudo isto é frio e tudo isto é novo para mim. Não me lembro da última vez que fiquei para trás, convencida que tudo não passara de um engano. Porque é isso que eu penso. Um dia vais ligar. Um dia vais me ver no aeroporto de Milão, ou Madrid, ou Frankfurt, e eu estarei de vestido vermelho e salto alto. E nessa noite, tanto faz. Talvez te despreze, talvez te veja como da primeira vez. Olá o meu nome é Bea e volto amanhã para França. Hoje tanto me faz.

19/01/2014

Cartas de Évora I

(...) Mas não era isso. Pelo menos dessa vez não era isso, e creio que nunca chegou a ser. Durante o tempo em que estivemos juntos, um Verão inteiro, lembras-te? Evitámos o drama, ou evitaste-o tu pelos dois, e é isso que eu dizia, a vida descrita por ti devia ser um vulcão de excessos, uma aventura no limiar do irracional, era quase uma ficção, e eu deveria ter percebido que essa é a tua maneira de viver, um romance vale mais que mil ensaios, dizias muitas vezes, e tinhas razão, pelo menos tinhas a tua razão, e é por isso que percebo o que querias dizer com a história do bêbado e da vida dele, sim, cada um vive por dentro a sua própria metade da vida convencido que é apenas uma metade, mas na realidade é a sua vida inteira, a sua vida incomunicável, sentida como coisa tão inteiramente sua que nem sequer vale a pena partilhá-la, e isto é mentira, é uma mentira moral, não se trata de não valer a pena, isso é uma desculpa com que se ilude o pavor de não se poder transmitir e partilhar, estamos tão longe uns dos outros, é isso que eu sinto, como estou longe de tudo e de ti, meu amor. (...) Sentia que me amavas por fora de mim, que entre nós só existia uma precariedade feita do simples desejo de estarmos um no outro, e que isso tornava absurdo todos os sonhos que sonhara contigo, tenho pudor em escrevê-los e também agora já não interessa, mas a minha vida imaginada ficara pelo caminho e eu tentava desesperadamente perceber onde é que falhara e, era curioso, ao mesmo tempo tinha a sensação confortável de que o nosso fora um episódio sem falhas, nem tuas nem minhas, e isso revoltava-me, porque era injusto que duas pessoas tão obviamente feitas uma para a outra, desculpa a vulgaridade, se atropelassem assim, na pressa de partirem cada uma para seu lado (...).




por António Mega Ferreira

14/01/2014

Cartas do Brasil II

Sinto que foste tu que foste embora e que eu nunca sai da zona de embarque do aeroporto. O beijo que me prometi não aconteceu e eu não parei de sentir frio desde então. Choro quando não consigo mais fingir que tu vais voltar. Tento falar com toda a gente, ser de toda a gente, perguntar se te conhecem.
Na última semana, os meus pesadelos tornaram-se mais reais. Belisco-me repetidamente para acordar, mas do lado de lá, eu ainda faço parte da tua vida - e do nosso imaginário.
A tua fantasia morreu, mas a minha ficou. Vive da dúvida de não saber para onde foste, porque é que não me procuras mais, porque é que o despeito se finge de amor, porque é que estavas naquela noite, naquele hostel, perguntando pelo meu nome e pelo meu destino.
De ti (agora, entendo) sei tão pouco que foi quase suicida dormir abraçada às tuas costas. E lembrar-me em ciclo de tudo o que podiamos ter sido, sem o consentimento de ninguém.
Enganei-me sobre o quase tudo que eras - esse quase nada engasgado na falta de jeito para me mentires. Tentei simplificar-te e não fazer perguntas. Vim embora sem saber o que fazer com a minha vida, sem saber o que fazer contigo, com a roupa que usei na tua cama, com as fotos que oportunamente esquecemos de tirar.
Hoje começo a minha vida do zero, pela enésima vez. Já desfiz as malas por completo. Já fiz o meu primeiro jantar. Vivo sozinha pela primeira vez - e trago-te minando o meu tempo, o meu sono, os meus lugares. Imagino-te repetidamente deitado do meu lado - mas depois lembro-me que tu não és assim, que talvez aqueles nem sejam os teus traços, que definitivamente aquele não é o teu jeito. 
E assim, finjo que avanço, arrastando-me por ruas que não são minhas, na expetativa de te perder por fim na próxima esquina.