01/05/2011

Cartas de Lille XVIII

Só queria dizer que trago comigo vida para lá do que tu alguma vez poderás imaginar. Que não sou capaz de voltar ao início, porque trago comigo paixões e desgostos que tu nunca poderás compensar. Que tu nunca poderás respeitar.

Só queria dizer que em mim há pouco mais que o sabor metálico das viagens e isso consola-me. Consola-me porque vejo nos outros uma multidão de partida, uma multidão que, como eu, estará sempre, sempre de partida.

A verdade é mesmo assim, sabes? Essa verdade que não admites – a verdade que ele não admite. Eu estarei sempre de partida. Feita em cacos, na penúria de uma memória que insiste em revê-lo, em acordes já sem brilho, em guitarras sem charme. Já não se trata de amar ao desbarato, sem travão. Trata-se de fugir. Trata-se de não conseguir ficar. De não conseguir olhar para ele, nem para ti, e achar que o glamour dos vinte anos me escorregou deliberadamente das mãos. Que fiz as escolhas de ocasião por mera estupidez. Porque não fiz. Fi-lo com a sensatez dos velhos, que olham para trás e sabem que a inconsequência e o exagero aconteceram no tempo devido.

E depois, em mim sobra apenas a gestão dos que vão e das marcas que deixam; dos que desapareceram um dia, no ar, sem morada ou rasto. Em mim sobraram os que não me dão consolo porque, de repente, Coimbra se tornou um labirinto sem graça, onde os vícios se repetem indefinidamente, e onde eu não tenho, nem nunca tive, um mero lugar.

Aqui, a solidão é uma ressaca de dois dias. Aí, a solidão acorda comigo todas as manhãs e não há maquilhagem que a esconda. Acordar novamente com o desconcerto de estar longe – e ao mesmo tempo, tão estupidamente perto... lamento, mas não importa quanto me pregues, tenho o coração em permanente fuga.

1 comentário:

Misantrofiado disse...

As fugas... têm muito que se lhe diga.








Pessoalmente, aprendi a divertir-me com elas.
Até me ter apercebido que... as fugas, todas elas, sou eu próprio.