30/10/2010

Cartas de Lille V

Aquela era a última cerveja. Lembro-me dele perguntar qual a parte do meu corpo que gostava mais. Eu disse: os meus ombros. Ele disse: as minhas mãos. Ele perguntou qual era o meu apelido. A conversa derivou para qualquer coisa que eu já esqueci. Alguém dividiu uma cerveja comigo. Alguém dividiu mais três cervejas comigo. Alguém me trouxe a casa. Sobraram sensações e cheiros do mesmo bar de sempre, frases inacabadas ou que perderam sentido no volume da música. Talvez hoje eu reformulasse os diálogos, mas eu já não sei ser sóbria. Depois de dois meses, eu já não sei nem quem sou nem o que quero. Todas as manhãs ressaco na cama as loucuras que me propuseram. Apanhar o primeiro comboio que sair daqui e ao mesmo tempo ficar. Não depender financeiramente de ninguém e poder ir para outro sítio e poder começar do zero outra vez. Fazer do medo adrenalina. Quero demasiado que a minha vida e o que faço com ela valham a pena. Não importa se resolvemos seguir para um plano B ou plano C. Estou bêbeda de ansiedade e sinto que me movo com uma multidão de gente à minha volta a empurrar-me em todos os sentidos. Há demasiados braços e demasiadas bocas para me enlaçar e me prender. Mas ainda assim, sou e serei sempre um templo guardado para ti.

Já sinto tremores. Não quero pensar no quão doente estou. Pergunto-me se quando a alucinação parar, vão doer mais. Não me sinto cair, mas há aquela sensação permanente de vertigem. Eu sei que é apenas uma ressaca. Estou a refazer-me aos poucos, sentada no chão da lavandaria. Quero voltar a Paris, ao Porto, àquela sala vermelha que cheirava a incenso. Quero voltar a Bruxelas. Quero a liberdade de espírito dos homens que conheci aqui. Estou viciada em pessoas. A amizade já não chega. Tento sugar todo o magnetismo que têm. Meu Deus. Acho que vou estragar tudo. Há solidão nisto tudo e, ainda assim, tu estás sempre comigo e eu estou sempre contigo. No meio da noite, paro e o teu rosto conforta-me. Serás sempre a minha pessoa, mesmo quando voltas a casa e eu sei que ambos queríamos estar noutro lugar. Um dia, vais embora e não voltas mais. Não te desejo menos. Também tu te embriagaste na minha ausência. A China profunda, os olhos azuis e os olhos negros das mulheres da tua vida. Entre nós, há um acordo tácito de não falarmos delas nem deles. Amamo-nos e por isso não podemos negar vida um ao outro. Somos um abrigo juntos mas estamos sempre a partir. Consigo lembrar ainda os teus olhos e as tuas mãos cheias de vontade, o calor e o cheiro, as manobras e os detalhes que só tu conheces sobre mim. Às vezes tudo isto te assusta. A cumplicidade demasiado conformada que temos. Ninguém acredita que te amo, nem tão pouco sei se tu acreditas. Eu sei que vou a uma velocidade perigosa e que nada disto te cativa. Mas nem por um momento te larguei a mão. Os meus lábios continuam os teus.

1 comentário:

Vanessa disse...

és sempre tão verdadeira no que fazes e dizes... admiro-te muito por isso. :)

beijo enorme*