05/10/2010

Cartas de Lille IV


E quase meia noite e esta é a minha primeira hora vazia desde ha quatro dias. Estou sentada com Bruxelas à minha frente, a tentar endireitar as ideias. Sou estrangeira sob todas as formas e hoje deslumbro-me com quase tudo. Tenho o Barco Negro de Amalia a cobrir-me o corpo, uma tarde inteira de acordes flamencos e aràbes a repetir-se em mim hà mais de 48 horas. A Europa na minha vida e Portugal tão presente. E Lisboa em todo o lado.

Talvez isto seja o que passarei a chamar de sensações eràsmicas. Sim, sensações eràsmicas. O platonismo de os apaixonarmos por uma guitarra e de vermos o desespero tomar conta de nòs. Perdi a conta ao vinho, ao champanhe, à cerveja. No peito abre-se uma vontade de viver sem precedentes. Uma vontade estranha de amar e de amar ao voltar a ouvir cantar o Fado. Tenho um imenso medo de quando todo o êxtase morrer. De quando sobrar uma memòria amarga colada à pele. De quando não puder sentir isto nunca mais. De me tornar demasiado banal para tudo isto. Não suporto não sentir a vida a acontecer-me, a inevitabilidade disso, a eminência disso. Como se fosse tudo irreal. Europa, Lille, Bruxelas, Marrocos, Irão, Italia, o Fado, o destino que não é o meu porque não sou uma mulher bonita. Fodasse, digo, porque aqui ninguém me entende. Por algumas horas, tudo fez sentido, tudo valeu a pena. E depois, é como se nos escorregasse das mãos e estivessemos de novo bêbedos por capricho. Se pudesse, arrancava a memòria e não sonharia nunca mais com os acordes de uma tarde assim. O cheiro da casa, o nevoeiro do chà, o embaraço da espera e do silêncio. Que Deus me ajude, que preciso esquecer.

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