06/10/2008

Cartas de Coimbra XVI

by Ptashka Ptashka


O que eu faria se não quisesse viver depois de amanhã. Decerto não esconderia o ciúme. Diria de que verdades são feitas as minhas convicções. Da boa verdade e da má verdade. Esforçar-me-ia para fazer sentir mal muita gente; viraria a cara a quem sempre me a virou, desmancharia em mil bocados este sistema ordinário de prepotências e importâncias, onde as vagas para sermos tratados como gente cedo e sempre se esgotaram. Se assim quisesse, juro pelo céu que voltaria atrás para dizer às pessoas o quanto as admiro. Talvez me desse ao luxo de me confessar nos olhos de todos os que enganei. Mas acima de tudo, não esconderia o ciúme. Viveria tão normalmente com o que sinto como se não me pudessem de forma alguma julgar. Como se não me pudessem afectar dentro ou fora da minha pele – tão simplesmente porque me decidira a não viver depois de amanhã.
Por um dia, andaria de corvo ao ombro, aprendendo com a pressa do tempo como vivem os piratas de alcatrão. Daria o corpo à ciência, assinaria todas as petições que me dessem a assinar. Iria à igreja uma última vez e pediria que me lessem de novo a parábola do filho pródigo. Conheceria Coimbra melhor, riscaria do mapa Lisboa e as canções que sobre Ela nos ensinaram. Beberia até cair. Sim... beberia até sentir que uma mulher tudo aguenta. Falaria alto, alto o bastante para saber que por uma vez me conseguia fazer ouvir. Votaria Jerónimo. Não por convicção, mas por ousadia. Voltaria a acusar-te de todo o sofrimento que trouxeste. De todos os dias difíceis, de todas as vontades inesperadas de chorar, de todas as noites em que voltei sozinha para casa apertando nas mãos uma solidão que não me pertencia.
E quando já não me apetecesse mais nada, deitar-me-ia cansada no teu abraço e esperaria um dia reencarnar na pele de umas perfeita autista.

2 comentários:

Anónimo disse...

sure, why not!

Neide Mahomed disse...

Uau ... tao lindo.
Impremi e tudo para ler sempre para mim.

Bjhos