09/10/2008

Registos Futuros de um imbecil

Stouf - Am I Alone, by Pee Ash



« Perguntaste-me o que diria hoje sobre Ela. Não é que importe, não é que alguma vez tenha importado... Ter-me-ia eventualmente perdoado tudo,teria lá estado, fizesse eu o que fizesse. Quando Ele morreu, a minha vida desmoronou também - coisas do acaso, digo a mim mesmo. E no entanto, sinto ainda a minha presença passiva enquanto Ela não chorava. Enquanto ela não chorava apesar do vazio que ficou quando tudo, literalmente, acabou. O caixão desceu à terra e eu vi-lhe nos olhos a luz a fugir. Ainda hoje desespero ao ver um amor assim. Foi há muito tempo, há demasiado tempo ... Ficou a ideia de que era ela que morria e ela quem enterravamos. Custou-me como se assim fosse - e aquele o cenário mais doente que vi até hoje. Ninguém devia perder aos 20 anos a própria velhice. Os sonhos de uma casa e de uma enorme família, o riso, o gosto pelas coisas, a melhor pessoa do mundo, a virtude de amar a certeza de uma vida a dois. Ao pé de tudo isto, todas as minhas escolhas não passaram de enormes asneiras.
Com o tempo, deixei de lhe ligar. Há mais de trinta anos que não oiço a sua voz traçada de álcool e tristeza. E, no entanto, todos estes anos carreguei a culpa de não ter impedido a minha melhor amiga de cair na solidão apática dos que negaram toda e qualquer prancha de salvação. Logo ela, a que menos merecia, a que soubera escolher e acertar à primeira. Logo ela, que reinventou mil formas de sobreviver ao destino. A que trabalhou, estudou e que, de alguma forma, tinha sempre tempo para ouvir o que eu não dizia. A que se arriscava porque se preocupava demais comigo. A que bebeu até cair no dia em que não lhe contei que namorava com a Teresa. A que se fez à estrada para estar ao meu lado quando a Teresa se foi embora. A que esteve sempre na sombra, conformada por eu ser um imbecil.
Lembro-me que era frágil. Lembro-me das vezes em que não aguentou e largou a chorar no meio do café. Chorava de cara voltada e de olhos fechados – como se assim conseguisse que eu não a visse chorar. E depois enxugava a lágrimas com a ponta da camisola, sorria para mim e dizia: “sou uma parva, desculpa”. Tantas vezes que a desculpei! E no entanto, quando ele morreu, não tremeu um bocadinho que fosse. Não falou sequer. O corpo dela estava hirto e gelado quando a abracei, mas nem com isso ela se comoveu. Estava morta por dentro, tive a certeza.»

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