10/12/2006

A 5ª. Edição do Canto de Contos




Estão a discutir outra vez. Já faz parte. Tal como as olheiras que ela terá amanhã de manhã, enquanto me desejar Feliz Natal. Tal como o semblante que ele terá enquanto fingir que nada se passou. Tal como o choro miúdo da avó que diz que a culpa é sua e que se morresse todos nós ficaríamos melhor.
E eu… eu digo à avó que a culpa não é de ninguém. Que todos têm maus momentos. E que ela ainda há-de viver por muitos, muitos anos.
Digo, no fundo, o politicamente correcto. Porque eu sei que aquele não é afinal um mau momento, mas um entre tantos, com a diferença de todos os anos se suceder indiferente à quadra. E sei também que a avó não vai viver por muitos mais anos – porque ela não quer.
Porém, também sei que culpa alguma morre solteira, e esta culpa não é da avó mas minha. Sempre o foi. E ela lembra-me disso a cada discussão.
Recordo-me agora de ouvir dizer que os filhos de um divórcio se debatem com isso, com essa culpa. Mas terão, talvez, duas partes jurando sempre que a culpa não é deles. Que a culpa não é de ninguém. Provavelmente porque são pequenos demais para carregar pela vida fora um fardo assim, uma culpa tão imensa. Ainda para mais se for noite de Natal.
Eu, por outro lado, sei que sim. Que a culpa é minha e sempre o foi. Porque ela me o diz, porque ela faz com que eu acredite religiosamente nisso.
Este ano tenho novamente muitas prendas à minha espera. Dá para ver naquele saco acolá, logo ali à entrada. Não que eu ache que as mereça. Mas fui afinal a criança que nunca deu arrelias a ninguém. A filha que eles dois sempre quiseram. A filha que ela sempre quis. Ainda que culpada.
Cá fora, debaixo do pinheiro que o avô plantou quando eu nasci, sei que a discussão continua. Ela chora e diz que a culpa é sua. Ele exaspera-se e pede-lhe que não seja dramática. Os tons de voz alteram-se. E consigo agora escutar apenas palavras soltas. Mas não posso chorar.
De repente, ela veio cá fora. Não olha para mim, mas move-se como que reagindo à minha presença. As olheiras já lá estão; assim como as expressões vincadas no rosto, assim como o ódio e o descrédito delineando e envelhecendo-lhe o espírito. Veio fumar. Nunca, alguma vez, a tinha visto fumar. Nem sei onde arranjou tabaco àquela hora. E enquanto sopra o fumo nauseante do cigarro, continua a não a olhar para mim.
Acho que me diz que a vida dela estagnou por causa da minha. Que o mundo dela gira em torno do meu. E que a culpa disso tudo, e de tudo o que demais a mata aos poucos, é minha. Que a culpa é minha, e sempre foi.
Um vento frio insuflou-se entre nós duas, agorinha mesmo. É um frio cortante, sabe-me a solidão. E logo de seguida, o sino começou a tocar. E ainda toca. Sei, enfim, que Jesus nasceu numa noite como esta, Ele que devia nascer sob uma noite brilhante, de lua prateada e cheia, numa noite de alegria, união, paz e amor. Ao invés, é uma noite de solidão. Como afinal têm sido todas as noites de Natal desde há tanto tempo. Uma noite onde me sinto mais quente e em paz cá fora, na ombreira desta porta, escrevendo; pretendendo fazer crer a um destinatário ausente que a culpa não é minha. Mas esse destinatário nem do longe consente o perto. Nunca há-de cá estar para me convencer que a culpa não é minha.
Por isso, eu escrevo. Mesmo que sem resposta. E hoje, depois de dezassete anos, sei ainda que a culpa é minha. E que sempre o foi. Feliz Natal.
.
.


Eis o meu conto de Natal. Adequado a um estado de espírito, puramente fictício.

16 comentários:

Parrot disse...

Beatriz,

Este conto gera um misto de sentimentos....para mim é sempre esperança. :))

Parabéns pelo conto.

Feliz Natal

tb disse...

Parabéns pelo conto!
Feliz NAtal também :)

Teresa Durães disse...

vim li gostei

José Pires F. disse...

Muito bem posta a nota final, embora, não me custe acreditar neste drama. Quantos haverá assim?…

Gostei como gosto sempre do que escreves. Muito.

Enorme abraço.

Anónimo disse...

Maravilhoso...
Um belo conto, com palavras formando idéias, com ideais chamando razões e com razões se perdendo no tempo...

"Mas esse destinatário nem do longe consente o perto. Nunca há-de cá estar para me convencer que a culpa não é minha."

Mas há sempre a duvida a existir e com ela a esperança...

Realmente sua escrita é linda.

Beijo, boa noite e ótima semana

:*

Clarissa disse...

Beatriz...doce Beatriz... confesso que não consegui acabar de ler o teu conto, atristeza invadiu-me de uma tal forma que não aguentei. Voltarei... voltarei mais tarde, por agora não consigo.
Um beijo de saudades

Alberto Oliveira disse...

... mesmo sem resposta (ou podendo até nem sair da gaveta) a escrita tem sempre destinatário; nem que sejamos nós próprios. E o que realmente conta é o exercício (escrevo eu), que sou muito dado às coisas da ginástica mental.

Mas como lês, tens resposta. Minha e sem sentimentos de culpa.
Feliz Natal.


Dobrou a folha muitas vezes (até ficar muito pequenina) e prendeu-a na pata do pombo-correio a quem segredou «Leva esta carta à Beatriz mas não te demores... que ainda tens de visitar muita gente que escreveu sobre o Natal»

Anónimo disse...

A culpa, não é tua.
É só o que tenho, agora, vontade de te dizer, mesmo sendo tudo ficção. E repito. A culpa não é tua.

Beijinho.

Sílvio Mendes disse...

E a culpada deste texto magnífico, quem é?

Fascinado.

Kaotica disse...

Beatriz

Se o teu conto é puramente fictício, melhor ainda porque ele é tão real, tão verosímil que te fez sentir essa necessidade de o anunciar como fictício e ainda bem que assim é. Conheço histórias de vida assemelhadas, conheço-as bem demais. A culpa é um fardo demasiado pesado e faz com que surjam cigarros impossíveis que se autodestroiem para nada.Gostei muito da maneira como escreves.
Abraço!

Anónimo disse...

Bem, chorei ao ler. Porque muitas vezes pensei que a culpa foi minha.

Mas nunca foi.

Lindo, Beatriz. Não me sai mais nada...

Beijinhos*

Maite disse...

Cara Beatriz

Um conto realmente chocante porque relata dramas que infelizmente acontecem com muita frequência.

Gostei de a ler

Uma boa noite para si :)

Anónimo disse...

Pensa que com a culpa surge igualmente a esperança..
Um texto soberbo que leva a uma séria reflexão.
Bom dia Beatriz.
Beijo

Klatuu o embuçado disse...

Sem qualquer dúvida, um dos melhores!

Anónimo disse...

Bia Beatriz princesa....


____________depois da saga terrível de tentar aqui escrever deixei no Espreitador o comentário que aqui não fui capaz de inserir...coisas destas cxs inteligentes....
Assim...
reitero só meu fascínio. pela tua escrita.

__________


isa/Piano

rafaela disse...

Um texto que me fez parar... Fiquei a ler-te e como te entendo, estado fictício de alma, tantas as vezes que me inundaste o peito... tantas as vezes me rodaste a chave da porta do quarto para parar os gritos, tantas as vezes me tapaste os ouvidos para eu deixar de respirar e me rolaste pela cara em forma de gota para levar a sujidade que tinha no coração... estado de alma... estado de ser...

Parabéns... Está tão bom que doeu, emocionou...

Brilhaste, parabéns... Belíssimo...
Beijos,
vou voltar...