21/04/2012

Cartas de Coimbra LIV

Eles não sabem, mas eu penso em matar-me todos os dias. Aquela ansiedade dormente, encostada ao peito, de fazer as coisas de uma outra forma. Ficou a exaustão de já não ter faces para dar. Os sonhos ficaram demasiado longe, porque eu própria fiquei longe de tudo, porque eu própria me perdi o rasto, porque eu própria não me reconheço mais. O mundo grita que eu não valho mais nada. Todos, todos os dias, o mundo grita que eu não valho mais nada. Fiquei perdida no limbo dos lugares da minha vida, sem poder partir, sem poder ficar. Recuo àquela tarde de perfeita loucura em que te falei pela primeira vez dos meus ombros. Eu gemia, tal bêbada, no chão da lavandaria da Residência Saint-Camille. Repetia, em convulsões, todos aqueles artefactos de memória. Meu Deus, como eu era feliz. Aquela vertigem de loucura, de doença, de despeito. Aquele sorrateiro prazer de uma caneca de cerveja que se tornava em tantas outras canecas de cerveja e, de repente, eu estava ali, hipnotizada pelo turpor da máquina de lavar, apenas à espera de um milagre.
Ainda me lembro do cheiro. Do frio. Do sono. Ainda me lembro das dores do corpo e das dores da alma - dores que eram outras, dores que faziam tudo valer a pena.
Lembro-me que a felicidade tinha nomes e tinha pretextos. Nós eramos o que de mais verdadeiro havia no mundo, com todo aquele amor ligeiro e instintivo que nos trazia unidos. E sabiamos que a vida nos havia de chutar para cantos opostos e que amores assim morreriam, com o mesmo ritmo caprichoso com que nasceram. E hoje olhamos para trás e trazemos mais remorsos que coração. Roubaram-nos tudo. As nossas melhores pessoas roubaram-nos tudo. Absolutamente tudo. E, sabes, amor... toda a gente viu, toda a gente sabe. Será sempre o meu segredo mais bem vendido.
Eles não sabem, mas eu penso em matar-me todos os dias. E todos os dias de uma maneira diferente.

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