19/01/2014

Cartas de Évora I

(...) Mas não era isso. Pelo menos dessa vez não era isso, e creio que nunca chegou a ser. Durante o tempo em que estivemos juntos, um Verão inteiro, lembras-te? Evitámos o drama, ou evitaste-o tu pelos dois, e é isso que eu dizia, a vida descrita por ti devia ser um vulcão de excessos, uma aventura no limiar do irracional, era quase uma ficção, e eu deveria ter percebido que essa é a tua maneira de viver, um romance vale mais que mil ensaios, dizias muitas vezes, e tinhas razão, pelo menos tinhas a tua razão, e é por isso que percebo o que querias dizer com a história do bêbado e da vida dele, sim, cada um vive por dentro a sua própria metade da vida convencido que é apenas uma metade, mas na realidade é a sua vida inteira, a sua vida incomunicável, sentida como coisa tão inteiramente sua que nem sequer vale a pena partilhá-la, e isto é mentira, é uma mentira moral, não se trata de não valer a pena, isso é uma desculpa com que se ilude o pavor de não se poder transmitir e partilhar, estamos tão longe uns dos outros, é isso que eu sinto, como estou longe de tudo e de ti, meu amor. (...) Sentia que me amavas por fora de mim, que entre nós só existia uma precariedade feita do simples desejo de estarmos um no outro, e que isso tornava absurdo todos os sonhos que sonhara contigo, tenho pudor em escrevê-los e também agora já não interessa, mas a minha vida imaginada ficara pelo caminho e eu tentava desesperadamente perceber onde é que falhara e, era curioso, ao mesmo tempo tinha a sensação confortável de que o nosso fora um episódio sem falhas, nem tuas nem minhas, e isso revoltava-me, porque era injusto que duas pessoas tão obviamente feitas uma para a outra, desculpa a vulgaridade, se atropelassem assim, na pressa de partirem cada uma para seu lado (...).




por António Mega Ferreira

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