17/12/2012

Cartas de Bordeaux II



Lembro-me que não nos enquadrávamos. Tínhamos voltado para sofrer e tínhamos voltado para fazer de conta. Era tudo demasiado paliativo. Foram as reviravoltas de bebida e foram as bebedeiras de sonho que nos tinham mantido e agora nada era como antes, e agora nada fazia sentido. Ali não havia nada para nós e a vida só valia a pena quando nos sentávamos os dois à mesa para um terceiro café e um último cigarro. Havia talvez demasiada insónia e demasiado dramatismo naquilo tudo, mas a Europa era um lugar estranho e nós não conseguíamos esquecer isso.
Ligava-lhe uma vez por mês e uma vez por mês, viamos um filme no teatro académico. Bebíamos sempre o terceiro café e fumávamos sempre um (último) cigarro. Depois subíamos até casa e despediamo-nos com um aperto de mão. Não sei se alguma vez nos tornámos amigos, mas, de qualquer forma, eu precisava daquilo. Ele sabia como era.
Eventualmente ele contou-me segredos e, eventualmente, eu arrependi-me amargamente de os ter guardado. Acho que é assim mesmo: as pessoas erradas tendem a fazer escolhas erradas. E nós éramos, por definição, pessoas erradas.
Depois eu conformei-me que o amor tinha batido à porta, a mim e a ele. Aquele era o segredo. Nunca lhe contei a história do meu amor, mas ele disse-me, num aperto de mão, que não queria saber essa história. Ao invés, infinitamente irresponsável, falou-me do amor dele, e dos amores dele, e das escolhas erradas que fazia todos os dias. E, no entanto, ele era tão mais certo que todos os outros, porque a vida dele era uma verdade, mesmo se cravejada de mentiras. Mesmo se completamente cravejada de mentiras.
Quando se abriu finalmente uma porta, eu sabia que não haveria mais ninguém para a passar comigo. Não era um amigo, nem tão pouco me fazia sentir menos sozinha. Era apenas igual a mim e permitia-me existir sem a iminência permanente de fugir.

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