26/06/2016

Cartas de Lisboa XIX

Last Night (2010)


Há sítios em nós que não deviam existir. Odeio lembrar-me daquela despedida. Odeio pensar tanto em ti. Há 922 dias que me fui embora – que tu te foste embora. Odeio querer escrever-te tantas vezes e saber que tu desististe de me responder. Odeio que sejas importante, depois de tanto tempo. Odeio esta moral dos filmes: tu só existes porque passamos menos de 72 horas juntos. Só existes porque escrever-te nunca foi suficiente e porque a vida te aconteceu, e a mim também, mas eu fiquei sempre refém do reflexo do homem que nunca foste e que agora mais ninguém vai conseguir ser.

Há sítios em nós que não deviam existir porque estão armadilhados. Seria mais fácil acreditar em amores impossíveis, na lentidão com que os destinos se concretizam ou em distâncias insuportáveis. Mas nem tu nem eu alguma vez acreditamos nisso. Escolhemos vidas bem debaixo dos nossos narizes. Tu e eu nunca existimos, na verdade. Não como planeámos.

Recordo-me naquela noite em que escreveste. Preciso parar de pensar em ti. E eu deixei armadilhar-me. Pediste desculpa tantas, tantas! vezes - que eu perdi sequer o direito de te odiar. E ter a tua simpatia, e a tua confiança, a certeza ingénua que quase foi real, tudo isso me tem refém da eterna armadilha que me montaste. Da armadilha que me montaste sem querer. És um homem bom que me tentou amar. E tudo isso é extraordinariamente triste. Não fomos desenhados um para o outro e no entanto a minha vida ficou suspensa na tua boca. Mantenho de pé as pontes instáveis que nos ligam e finjo que elas conseguem ainda suportar o peso do tempo. Sei que um dia vais casar e um dia vais ter filhos e um dia talvez voltes de mão dada com eles. Encontrar-me-ás de costas voltadas para mim própria, na eterna depressão que é não ter verdadeiramente escolhido nada do que nos aconteceu e ainda tão pateticamente apaixonada pelas portas que tu deixaste entreabertas.

Há sítios em mim que não deviam existir mas existem. Talvez por ter sido a mais infiel das pessoas que conheço. A passagem do tempo sempre foi aflitiva e eu não podia deixar passar em branco as horas que um dia se podiam tornar em histórias. No fim do dia, dormir sozinha não era um problema mas um disfarce. Tu nem me conheces, talvez tivesses ficado se me conhecesses. Passaram-se 922 dias desde que me deixaste no aeroporto e aquela nem era eu - há tanto tempo que não sou eu. Nos primeiros meses, tive pesadelos todas as noites. Acordava suada, convencida que tinha gritado o teu nome durante horas. A negação durou demasiado tempo e hoje o luto voltou ao início.