30/01/2011

Cartas de Lille XI



O primeiro metro da manhã. O frio das nossas mãos ainda quentes, o bocejar de uma noite a preto e branco, a distância dos meus olhos por não saberem onde trago o coração. Viver assim e os estragos que faz. Os homens que não amo e com quem me deito. Os homens que amo e que hoje ainda procuro na mesma rua, na janela que hoje ainda não sei qual é. Os cheiros de um mercado com a tradição gelada dos domingos de manhã. As caras que nunca são a que eu mais procuro. Os acordes que nunca são os da guitarra que eu realmente quis. A sensação de caminhar vazia, no desconcerto que é sentir as palavras nascerem-me de um arrepio, no desconcerto de amar toda a gente e ninguém. O reboliço e os pregões dos vendedores árabes que têm os mesmos olhos dos homens que não me quiseram, dos homens que me venderam, dos homens que não escutaram o que a minha respiração dizia. A minha verdadeira natureza, moldada num rosto que foi teu. Escrita num corpo que eu achava que seria teu para sempre.

No primeiro metro da manhã, não me reconheço mais nem sei o que faço aqui. E no entanto, neste equilibrio de mágoa e despeito, de sexo e traição, sinto-me suspensa, a pairar sobre a realidade, uma realidade que, um dia talvez, eu perceba, foi apenas cobardia, mentiras de resolução adiada, cinismo, falta de caracter. E ainda assim, estou, sem qualquer engano, onde deveria estar, onde deveria ficar para o resto da minha vida.

10/01/2011

Cartas de Lille X




Tornaste-te finalmente uma memória com rosto e agora escrevo-te quase sem culpa. Matamos o nosso amor por falta de tudo ou ele morreu naturalmente de velho. E ainda assim, amar-te foi o único lugar do mundo onde tive paz e, quiça, o último. Mas eu não te amo mais, nem nós nos amamos mais, e eu estou partida, estou feita em cacos, minada pelas dúvidas, o alcool, a falta de amor próprio, o desejo.

Sou hoje tudo o que está errado no mundo, nos homens que se arrependem de mim, das mulheres que se arrependem do amor. Quero tudo agora, num estalar de dedos, sem me ter sequer a mim própria. Usei e fui usada. Fingi sem jeito e, mesmo sem lágrimas, deixei que me vissem chorar, fugir e esconder. Por mais que corra, as memórias virão atrás e eu nunca vou deixar de ter 16 anos e de sentir a distância nos olhos dos outros.