27/12/2008

Cartas de Lisboa V

les tags. by *moumine
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Os lugares comuns que são memórias. Os olhos que não foram teus mas que conheceste, abrigados nas histórias de que ouviste falar. A sala das tristezas, o entrelaçar das linhas que formam novelos de solidão, o desejo de investir corpo a dentro do corpo que apertas contra ti, a vontade brusca de sentir, dividida com o tempo que te resta para fazer o mundo andar. É Natal e os destinos fazem-se por automatismo, com as tradições negligentes dos velhos. Olhar para trás custa, mudar custa demasiadamente mais. A frenética loucura de quem tenta dar sentido à consoada dos sem amor, mas que não consegue e volta ao ponto de partida com menos força, com menos mérito. Tomara que voltes depressa e me ensines de novo como se amam as pessoas versáteis. As vivências vão crescendo connosco e um dia é nelas que nos tornámos. Cinzentos, com a boca a saber a papéis de música e os casacos com o cheiro dos nossos avós. Já ninguém nos muda, tal é o pragmatismo de um destino assim, ditador da nossa forma de estar conforme a forma como vimos os nossos pais morrerem todos os natais. Cresce depressa, peço todos os dias ao filho que não trago dentro de mim. Impacientemente, eu sei que é dele que todos esperam para os tirar da vida vicciosa que foi uma vida sem vícios. Já nada dos contenta, já nada nos muda. O amor inventa-nos todos os dias e eles inventam segredos para o amor não lhes tocar. Quisera eu ganhar as pequenas guerras para nos salvar a todos de uma guerra travada descabidamente em silêncio. Quisera eu chamar as coisas pelos nomes, fugir no sentido proibido da vida, levar comigo apenas a idade em que tudo se define. Ao “tarde de mais” eu chamo de culpa, e à culpa eu chamo família.

01/12/2008

Cartas de Lisboa IV

by mrsunshine


As cicatrizes não doiem, dizes. A pele secou e cresceu por cima, nós arrancámos as crostas, houve todo um processo de fazer esquecer o que não se pode esquecer, choro ainda (às vezes), não sei se quero lembrar, não sei se quero esquecer. Por mais que perdoe, o tempo não esconde e eu tenho muito medo desta forma suspendida de levar a vida. Tudo é frágil, temporário. Tudo é a promessa de que nada é prometido; um dia acordas e não tens chão, um dia olhas pela janela e não tens motivos para querer sair, um dia voltas a casa e não tens chave para entrar. Coimbra é a garantia para quase nada, Lisboa um pacto assinado com a tristeza. Tudo está bem enquanto está bem. Tu não sabes do que falo e isso custa-me. Medes o valor das coisas com uma escala diferente e ensinar-te a ver as coisas como eu as sinto seria perder o pouco tempo que me resta. É talvez esta a trágica vantagem das coisas que nos acontecem sem que tenhamos culpa. O karma não explica e nem assim tu achas que podias ter feito melhor. Encolhes os ombros e no fundo apetece-te dizer que é natural que a vida gele nas minhas mãos cada vez que te vejo por dentro. Há um corvo todas as manhãs na minha janela, a tentar que eu acredite no destino. Eu penso apenas em probabilidades. Nas probabilidades das coisas acontecerem da forma oposta à forma que sempre predissemos. No fundo, sei que mentes. Sei que sempre mentiste e que nem deste conta. A validade dos teus sonhos é, simplesmente, mais curta que a minha. E disso ninguém tem culpa.
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